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terça-feira, 10 de outubro de 2017

A BÍBLIA - Venha aprender mais sobre este marcante livro sagrado.



                                                            A BÍBLIA
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INTRODUÇÃO

Você já ouviu falar muito sobre a Bíblia. Durante os cultos já ouviu ler muitos textos da Bíblia. Talvez tenha sido esse seu primeiro contato com esse livro misterioso.

Afinal você resolveu adquirir uma Bíblia ou, quem sabe, você a recebeu de presente. E agora, aí está na sua frente esse livro. É bastante grosso, a capa é mais bonita, com as letras douradas: BÍBLIA SAGRADA. Você abre a primeira página e não encontra o nome do autor como está acostumado a ver nos outros livros. Logo mais abaixo do título está escrito: “Tradução dos originais hebraicos, aramaicos e gregos. Ao pé da página, você encontra, como nos outros livros, a indicação da cidade onde foi impresso e o ano da edição. Você está diante da Bíblia”.

É interessante como a gente se sente diante de um livro. Temos a impressão de estar diante de uma aventura, diante de uma porta misteriosa que nos abre mundos novos e fascinantes. Essa impressão é mais forte ainda diante da Bíblia. Parece que o mistério é maior ainda. Sabemos que é um livro escrito há muito e muito tempo. É um livro que sempre tivemos em grande consideração, apesar de não o conhecermos diretamente. O primeiro pensamento que nos vem é a pergunta: será que vou conseguir entender? Chegamos a ter mesmo um pouco de receio ao começar a leitura.

Mas, em geral, não começamos imediatamente a leitura... Primeiro folheamos as páginas ao acaso. E logo começamos a encontrar palavras e títulos estranhos: Gênesis, Êxodo, Levitico, Primeiro Livro dos Reis, Jó, Salmos, Sofonias, Apocalipse... Lemos uma frase aqui, outra ali. São frases num estilo, num modo de falar que nos parece muito diferentes de tudo quanto estamos acostumados a ouvir.

E mais. Até o próprio índice desse livro chamado "Bíblia" é interessante. Notamos logo duas grandes divisões: "Antigo Testamento" e "Novo Testamento. Para nós,” testamento “é um papel deixado por uma pessoa, determinando como deve ser feita a partilha da herança”.

O que vem a ser, então, "Novo Testamento? Interessante também é ver que esse livro estranho está dividido em muitos outros livros": Livro do Gênesis, Livro do Êxodo... Não há dúvida. Estamos diante de um "livro" diferente dos outros.

Enquanto vamos fazendo assim uma leitura rápida e salteada, vão nascendo outras perguntas mais. Como é que esse livro chegou até nós? Quando foi que apareceu? Quem escreveu? Por que a linguagem desse livro parece assim tão difícil e diferente? O que quer dizer que a Bíblia é a palavra de Deus para nós, como você já ouviu dizer tantas vezes? Será que Deus escreveu pessoalmente esse livro? Será que foi ditando as palavras para que alguém as escrevesse? Bíblia. Por que será que esse livro se chama "BÍBLIA"?

Quando começamos de fato a ler a Bíblia, então sim, é que as perguntas vão ficando cada vez mais numerosas. Se a gente, por exemplo, começa a ler o Livro do Gênesis, encontra logo a história da criação do mundo, a criação do homem feito de barro, a mulher feita de uma costela de Adão. Vêm depois à história do dilúvio e muitas outras, onde aparecem Abraão, lsaac, Sodoma e Gomorra, os filhos de Jacó. Encontramos até mesmo algumas histórias que nos parecem quase escandalosas. O que significam essas histórias? como compreendê-las? que importância elas têm para nós? será que o mundo foi mesmo criado em seis dias?

Acho que você, depois de ter assim folheado a Bíblia, já percebeu e sentiu a necessidade de uma introdução que nos ajude a compreender esse livro. Sem uma introdução, é quase certo que vamos abandonar a sua leitura, principalmente a leitura da primeira parte, chamada “Antigo Testamento. Ou, se continuarmos a leitura, haverá o perigo de formarmos uma infinidade de idéias falsas”.

É sempre difícil a gente ler um livro antigo. E nem precisa ser tão antigo assim. Se tomarmos um livro escrito há uns cem anos atrás, já vamos notar um modo de pensar e de falar totalmente diferente do nosso. É só lembrar as dificuldades dos estudantes quando começam a ler as poesias de Camões e outras obras escritas em português antigo. E a Bíblia é muito mais antiga e foi escrita num ambiente muito mais diferente do nosso.

Justamente para ajudá-lo no seu primeiro contato com a Bíblia é que foram escritas estas páginas. Não pretendo dar a interpretação desta ou daquela passagem da Bíblia. Vou tentar uma introdução geral, uma explicação que facilite a interpretação e a compreensão de todo o livro, uma resposta pelo menos a algumas de suas perguntas.


1. A HISTÓRIA DA BÍBLIA

1.1. A História Do Livro

Os homens sempre sentiram a necessidade de se comunicar, falando uns com os outros sobre si mesmos, sobre os acontecimentos, sobre o mundo, sobre tudo afinal. Bem depressa, ao lado dessa comunicação oral, nasceu uma "literatura", uma comunicação mais elaborada. Eram hinos e poemas que falavam sobre os acontecimentos do passado, sobre os deuses, sobre os costumes e as tradições. Eram textos nascidos nas reuniões da comunidade, textos feitos para serem declamados. Textos que continuavam a ser repetidos de cor, muito depois que já se tinha esquecido o nome dos seus autores.

Hoje em dia, a Bíblia é para nós principalmente um livro. Não podemos, porém, esquecer que grande parte da Sagrada Escritura, antes de ser um livro escrito, foi uma série de poemas e narrativas que eram repetidas de cor nas assembléias do povo. Abra sua Bíblia nas profecias de Jeremias. A nossa primeira impressão é que o profeta escreveu tudo antes ou logo depois de ter falado. Mas não foi assim. O profeta falou e só vinte e dois anos depois é que suas profecias foram escritas.

Justamente para facilitar o trabalho da memória e ajudar a transmissão falada é que a maioria dos textos eram compostos numa forma ritmada e num estilo cheio de paralelismos e repetições, rimas e provérbios.

Hoje em dia a base da nossa instrução é o aprendizado da leitura e da arte de escrever. Antigamente a instrução, a cultura baseava-se na memória, na repetição das tradições que deviam ser fielmente conservadas. Houve, porém, um momento em que a comunicação devia ser feita para pessoas ausentes, ou então, era preciso fixar de algum modo os textos, seja para ajudar a memória, seja para dar maior valor ao documento. Foi assim que a humanidade, numa época que já não podemos determinar com precisão, começou a recorrer à escrita.

Inicialmente, as palavras e as idéias eram representadas por desenhos que reproduziam a imagem dos objetos ou o símbolo das idéias. Essa primeira forma de escrita chamava-se "ideográfica", isto é: desenho da idéia. Aos poucos os desenhos começaram a representar os sons que formam as palavras. Nasceu assim a escrita "fonográfica": o desenho dos sons. Só muito mais tarde surgiram os desenhos que, de modo semelhante às nossas letras atuais, formavam a transcrição das palavras.

Quando os judeus ainda estavam vivendo no Egito, a escrita já era muito usada. Já fazia bem uns 1500 anos que os egípcios conheciam a arte de escrever. Pelas descobertas da Arqueologia (ciência que estuda as antigas civilizações), sabemos que já existiam alguns escritos bíblicos mil ou até dois mil anos antes de Cristo. Mas não vamos esquecer que esses textos eram parciais. Eram antes um auxílio para a memória, e não propriamente livros como os nossos, destinados a estar nas mãos de todo o mundo.

Os livros antigos não eram tão práticos como os nossos nem estavam ao alcance de todos. Eram coleções de placas de metal, de madeira, de argila, de cascas de árvore ou de folhas. Com o tempo, passaram a ser feitos com o papiro ou o pergaminho. O papiro era uma espécie de papel primitivo, feito com o caule da planta chamada papiro. O pergaminho era feito com pele de animais, principalmente carneiros e cabras, cuidadosamente preparada. As "folhas" de papiro ou de pergaminho eram emendadas, formando longas tiras de até 50 metros de comprimento, enroladas para facilitar o manuseio. Outras vezes, as folhas eram costuradas, formando um "caderno".

E não vamos esquecer que, antes da invenção da imprensa, os livros eram trabalhosamente copiados à mão, um por um. Isso aumentava muito o seu custo. Eram poucos os que se podiam dar ao luxo de possuir uns poucos livros.

Devido a tudo isso é que a cultura antiga não estava, como a nossa, baseada na palavra escrita. Os conhecimentos eram transmitidos principalmente através dos mestres, dos poetas e dos cantores, que recitavam de aldeia em aldeia os antigos poemas sobre os heróis e sobre os deuses. Temos de ter isso em mente quando começamos a folhear a nossa Bíblia.

Grego, hebraico e aramaico foram os idiomas utilizados para escrever os originais das Escrituras Sagradas. O Antigo Testamento foi escrito em hebraico. Apenas alguns poucos textos foram escritos em aramaico. O Novo Testamento foi escrito originalmente em grego, que era a língua mais utilizada na época.

Os originais da Bíblia são a base para a elaboração de uma tradução confiável das Escrituras. Porém, não existe nenhuma versão original de manuscrito da Bíblia, mas sim cópias de cópias de cópias. Todos os autógrafos, isto é, os livros originais, como foram escritos pelos seus autores, se perderam. As edições do Antigo Testamento hebraico e do Novo Testamento grego se baseiam nas melhores e mais antigas cópias que existem e que foram encontradas graças às descobertas arqueológicas.


1.2. História Do Antigo Testamento

Abrindo a Bíblia, notamos logo as duas divisões principais que a caracterizam: Antigo Testamento e Novo Testamento. A palavra testamento quer ser a tradução de uma palavra grega: "diatéke, que podia tanto significar” testamento como contrato “ou” aliança “. Na linguagem dos judeus, que viviam entre gregos, essa palavra” diatéke significava a aliança, o contrato pelo qual Deus se uniu a seu povo escolhido. Sendo assim, "Antigo Testamento" é a primeira parte do plano de Deus para a salvação da humanidade, a história da aliança feita com o povo judeu. Novo Testamento “é a história da aliança definitiva entre Deus e toda a humanidade, aliança que renova e leva à perfeição a primeira aliança feita com um povo”.

O Antigo Testamento engloba os livros da Bíblia do tempo dos judeus até o tempo de Jesus. Os judeus dividiam a Bíblia em três partes: a lei, os profetas, os escritos.

A primeira parte, a lei, era chamada "Torah". É composta pelos cinco primeiros livros: gênesis, êxodo, levitico, números e deuteronômio. Essa parte é também chamada de "Pentateuco", o que quer dizer: “Os cinco livros. Contém as leis dadas por Deus e narrativas que apresentam as circunstâncias históricas da manifestação do plano de Deus para a salvação. Essa primeira parte ainda continua em nossa atual divisão do Antigo Testamento”.
As outras divisões atuais são: livros históricos, livros sapienciais, livros dos profetas. Por enquanto não importa explicar mais detalhadamente o conteúdo desses livros.

Mais uma vez usamos a expressão "livros da Bíblia. A Bíblia não foi escrita como um dos nossos livros atuais, divididos em capítulos, escritos segundo um plano previamente estabelecido. Foi surgindo aos poucos, através dos séculos, e é obra de muitos autores. Sendo assim, chamamos” livros “as principais unidades que formam a Bíblia. Mal comparando, poderíamos dizer que a Bíblia é uma biblioteca, uma coleção de vários livros que formam um só conjunto”.

Aliás, seria bom perguntar: de onde vem esse nome "Bíblia? Esse nome é simplesmente a adaptação de uma palavra da língua grega:” Biblos “, que significava” papiro “,” livro. A Bíblia é, pois, "O LIVRO", o primeiro, o mais importante de todos.

E também já é tempo de perguntar: “Como surgiu o Antigo Testamento?. Para responder, precisamos ver antes alguma coisa da história do povo que escreveu essa parte da Bíblia. Vamos traçar uma história bem reduzida de muitos séculos”.

Muitos séculos antes de Cristo, escribas, sacerdotes, profetas, reis e poetas do povo hebreu mantiveram registros de sua história e de seu relacionamento com Deus. Estes registros tinham grande significado e importância em suas vidas e, por isso, foram copiados muitas e muitas vezes e passados de geração em geração.

Com o passar do tempo, esses relatos sagrados foram reunidos em coleções conhecidas por A Lei, Os Profetas e As Escrituras. Esses três grandes conjuntos de livros, em especial o terceiro, não foram finalizados antes do Concílio Judaico de Jamnia, que ocorreu por volta de 95 d.C. A Lei continha os primeiros cinco livros da nossa Bíblia. Já Os Profetas, incluíam Isaías, Jeremias, Ezequiel, os Doze Profetas Menores, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. E As Escrituras reuniam o grande livro de poesia, os Salmos, além de Provérbios, Jó, Ester, Cantares de Salomão, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Daniel, Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.

Os livros do Antigo Testamento foram escritos em longos pergaminhos confeccionados em pele de cabra e copiados cuidadosamente pelos escribas. Geralmente, cada um desses livros era escrito em um pergaminho separado, embora A Lei freqüentemente fosse copiada em dois grandes pergaminhos. O texto era escrito em hebraico - da direita para a esquerda - e, apenas alguns capítulos, em dialeto aramaico.

Hoje se tem conhecimento de que o pergaminho de Isaías é o mais remoto trecho do Antigo Testamento em hebraico. Estima-se que foi escrito durante o Século II a.C. e se assemelha muito ao pergaminho utilizado por Jesus na Sinagoga, em Nazaré. Foi descoberto em 1947, juntamente com outros documentos em uma caverna próxima ao Mar Morto.


1.3. O Mar Morto

Várias foram às descobertas arqueológicas que proporcionaram o melhor entendimento das Escrituras Sagradas. Os manuscritos mais antigos que existem de trechos do Antigo Testamento datam de 850 d.C. Existem, porém, partes menores bem mais antigas como o Papiro Nash do segundo século da era cristã. Mas sem dúvida a maior descoberta ocorreu em 1947, quando um pastor beduíno, que buscava uma cabra perdida de seu rebanho, encontrou por acaso os Manuscritos do Mar Morto, na região de Jericó.

Durante nove anos vários documentos foram encontrados nas cavernas de Qumran, no Mar Morto, constituindo-se nos mais antigos fragmentos da Bíblia hebraica que se têm notícias. Escondidos ali pela tribo judaica dos essênios no Século I, nos 800 pergaminhos, escritos entre 250 a.C. a 100 d.C., aparecem comentários teológicos e descrições da vida religiosa deste povo, revelando aspectos até então considerados exclusivos do cristianismo.

Estes documentos tiveram grande impacto na visão da Bíblia, pois fornecem espantosa confirmação da fidelidade dos textos massoréticos aos originais. O estudo da cerâmica dos jarros e a datação por carbono 14 estabelecem que os documentos foram produzidos entre 168 a.C. e 233 d.C. Destaca-se, entre estes documentos, uma cópia quase completa do livro de Isaías, feita cerca de cem anos antes do nascimento de Cristo. Especialistas compararam o texto dessa cópia com o texto-padrão do Antigo Testamento hebraico (o manuscrito chamado Codex Leningradense, de 1008 d.C.) e descobriram que as diferenças entre ambos eram mínimas.

Outros manuscritos também foram encontrados neste mesmo local, como o do profeta Isaías, fragmentos de um texto do profeta Samuel, textos de profetas menores, parte do livro de Levitico e um targum (paráfrase) de Jó.

As descobertas arqueológicas, como a dos manuscritos do Mar Morto e outras mais recentes, continuam a fornecer novos dados aos tradutores da Bíblia. Elas têm ajudado a resolver várias questões a respeito de palavras e termos hebraicos e gregos, cujo sentido não era absolutamente claro. Antes disso, os tradutores se baseavam em manuscritos mais "novos", ou seja, em cópias produzidas em datas mais distantes da origem dos textos bíblicos.


1.4. O Povo Judeu

Percorrendo o Antigo Testamento, podemos ver a história do Povo Judeu. Hoje em dia, para nós, significa um relato exato do que aconteceu.
Se alguém tentasse interpretar a Bíblia, iria procurar, por exemplo, estabelecer datas exatas para a criação do mundo, o dilúvio, o nascimento de Abraão, a saída da escravidão do Egito. Isso não seria possível, porque a Bíblia não está interessada na data exata dos fatos. Está interessada em nos fazer compreender o sentido dos acontecimentos, como eles se encaixam no plano que Deus formou para a nossa salvação.

Mas, por outro lado, é interessante notar que as descobertas modernas sobre a vida dos povos que antigamente viviam naquela região confirmam plenamente as indicações da Bíblia sobre antigos costumes e tradições. Confirmam também muitas indicações sobre lugares e acontecimentos.

A maior parte dessas descobertas aconteceram por acaso. Foi assim que, em 1928, um lavrador estava arando, quando, de repente, seu arado encontrou uma pedra de sepultura. Um outro, em 1933, estava cavando uma sepultura e encontrou uma estátua antiga. Isso levou à descoberta de antigas cidades, com suas casas que sobraram de civilizações desaparecidas há muito tempo. Pouco a pouco a ciência arqueológica (ciência das antigüidades) vai-nos ajudando a ter um conhecimento bastante grande do passado. Ainda não sabemos as surpresas que o futuro nos reserva nesse campo.

Houve tempo em que muitos cientistas consideravam simples lendas todas as informações sobre os primeiros tempos do povo judeu. Principalmente o que a Bíblia conta sobre os patriarcas, os primeiros antepassados do povo. Atualmente a situação já é bastante diferente. A história bíblica dos patriarcas combina perfeitamente com as informações que atualmente temos sobre o passado. Se tivesse sido inventada apenas uns mil anos antes de Cristo, teria sido praticamente impossível imaginar costumes que correspondessem realmente a costumes de 800 ou 900 anos antes. A única explicação razoável é que os judeus, como todos os povos antigos, conservavam fielmente as lembranças do passado que formavam a sua "história familiar. Justamente porque eram tradições familiares é que a” história dos patriarcas “pouco se preocupa com os fatos da história geral. É antes uma seqüência de pequenos fatos do começo da família".

No Deuteronômio (26,5-10), encontramos um resumo da história dos patriarcas. Quando os judeus apresentavam a Deus os primeiros frutos de suas colheitas.

O povo judeu entrou para a história 1300 anos antes de Cristo, quando estava vivendo ainda no Egito. E o povo se reconhecia como descendente de Abraão, que tinha nascido mais para o oriente e durante algum tempo tinha vivido na região de Aram. Os judeus já estavam no Egito mais ou menos desde o ano 1700 a.C. (a.C.= antes de Cristo). Isso quer dizer que Abraão viveu lá pelo ano 1800 a.C. Seus descendentes, Isaac, Jacó e seus filhos, levavam uma vida seminômade, de um lado para o outro, até que os dois irmãos se fixaram no norte do Egito.

Não sabemos praticamente nada da sua história durante os 400 anos seguintes. Até lá por 1250 a.C., quando, guiados por Moisés, saíram do Egito. Durante vários anos, 40 mais ou menos, tiveram no deserto a experiência religiosa da manifestação de Deus. A partir de 1200 a.C., começaram a se apossar da Palestina, a região entre o Mediterrâneo e o Jordão.

Durante todo esse tempo, o povo judeu conservava cuidadosamente as tradições do passado em seus cantos, poemas, salmos e narrativas. Conhecia o Deus verdadeiro, tinha consciência de ser o povo por ele escolhido. Conservava suas leis e os ensinamentos religiosos eram passados de pais para filhos. Mas não apenas conservavam a religião do passado. Iam crescendo em sua vida religiosa, com altos e baixos, tempos de maior ou de menor fidelidade à aliança estabelecida com Deus. Continuamente eram ajudados e orientados por Javé, que lhes enviava homens providenciais. Podemos admitir que já por essa época muitas tradições não se transmitiam apenas oralmente, muita coisa já estaria sendo posta por escrito.
Finalmente, lá pelo ano 1000 a.C., o povo já estava estabilizado na Palestina, tinha deixado de ser um povo nômade. Começou, então, a época dos grandes reis. Com isso, elevou-se também a cultura do povo e a literatura entrou numa fase decisiva.


1.5. Começa A Surgir A Bíblia

Pelos fins do décimo século a.C., começam a ser escritas as narrativas sobre Davi e Salomão, as primeiras partes dos livros que agora em nossa Bíblia se chamam 1º e 2º Livros de Samuel, e o começo do Livro dos Reis. Por esse mesmo tempo é escrita a história do passado mais próximo, as narrativas que encontramos nos Livros de Josué e dos Juízes.

Quando a realeza já estava mais organizada, começaram a se formar os "Arquivos de Estado", que conservavam a documentação para os escritores do futuro. Só no século seguinte começaram a ser escritas as tradições mais antigas sobre os patriarcas Abraão, lsaac e Jacó, a história da saída do Egito, os acontecimentos do deserto. Começou assim a formação dos livros que agora chamamos de Gênesis, Êxodo, Números.

A partir do ano 800 a.C., temos a época dos profetas, dos grandes homens enviados por Deus para orientar o povo, para ajudá-lo a compreender os planos divinos. As Mensagens dos profetas foram em parte escritas por eles mesmos, em parte por seus discípulos. Formou-se assim a coleção dos profetas, essa parte da Bíblia que é uma das mais ricas e sedutoras.

Uns cento e poucos anos depois, entre 700 e 600 a.C., já estavam por escrito os acontecimentos relativos à conquista da Palestina e o que aconteceu até o fim da realeza. São partes dos Livros de Josué, dos Juízes, de Samuel e dos Reis. Nesse mesmo tempo, começou a ser posto por escrito o Livro do Deuteronômio, que é uma reapresentação meditada da Lei Divina.

Apesar de todos os avisos dos Profetas, o povo não manteve fidelidade a Deus. O grande castigo chegou em 587 a.C., quando Jerusalém foi destruída e o povo quase todo foi levado para o cativeiro na Babilônia. Durante esse tempo de sofrimento, renasceu o espírito religioso dos judeus. Começaram a refletir sobre tudo quanto Deus tinha feito por eles. Surgem assim as partes do Antigo Testamento que se referem principalmente ao culto, ao serviço divino no templo, à organização no templo, à organização da comunidade religiosa voltada para Deus.

Quando o povo pôde voltar para a pátria, começou o último tempo na história da formação do Antigo Testamento. Os livros do passado foram reunidos, retocados, completados. Surgiram em sua forma definitiva os cinco primeiros livros Gênesis, Êxodo, Levitico, Números e Deuteronômio. Foram escritos os livros que chamamos de "Sapienciais", (incluindo aqui o cânon protestante e católico) Provérbios, Jó, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Eclesiástico. Esses Livros Sapienciais são o fruto de uma reflexão que procurava levar à "sabedoria da vida", à compreensão dos planos de Deus.

Um pouco mais tarde surgiram os Livros das Crônicas, de Ester, de Judite. E com isso já estamos a apenas uns 300 ou 200 anos antes do nascimento de Jesus. OS judeus, que antes já tinham tido tantas dificuldades com os poderosos povos do oriente, tinham agora de enfrentar a influência dos gregos, depois das conquistas de Alexandre Magno. Mais ou menos 100 anos a.C. foram escritos os dois Livros dos Macabeus, que retratam essa época tão difícil para a fé do povo judeu. Desse mesmo tempo é o Livro de Daniel, colocado entre os livros dos profetas e Sabedoria.
Pois bem. Depois dessa rápida passagem através dos séculos, podemos perceber como a Bíblia do Antigo Testamento foi surgindo aos poucos, foi sendo completada e retocada. Não podemos imaginar que tenha começado com a composição do Gênesis e tenha sido escrita na mesma ordem que encontramos em nossa Bíblia atual. Sua história é muito mais rica e mostra de forma grandiosa a ajuda que Deus foi dando ao povo escolhido. Nessa longa história do nascimento da Bíblia, aparece mais claramente o poder de Deus. Muito mais claramente do que se Deus tivesse "ditado" a Bíblia para Moisés e os outros autores.

Uma última observação: Nem tudo ainda é inteiramente certo nessa história que apresentamos resumidamente. Nem sempre os especialistas estão de acordo e não podemos aqui discutir todos os pormenores. Interessa-nos apenas uma visão geral e aproximativa.


2. BÍBLIA

O nome "Bíblia" vem do grego "Biblos", nome da casca de um papiro do século XI a.C.. Os primeiros a usar a palavra "Bíblia" para designar as Escrituras Sagradas foram os discípulos do Cristo, no século II d.C.;
Ao comparar as diferentes cópias do texto da Bíblia entre si e com os originais disponíveis, menos de 1% do texto apresentou dúvidas ou variações, portanto, 99% do texto da Bíblia é puro. Vale lembrar que o mesmo método (crítica textual) é usado para avaliar outros documentos históricos, como a Ilíada de Homero, por exemplo;

Foi a primeira obra impressa por Gutenberg, em seu recém inventado prelo manual, que dispensava as cópias manuscritas;

A divisão em capítulos foi introduzida pelo professor universitário parisiense Stephen Langton, em 1227, que viria a ser eleito bispo de Cantuária pouco tempo depois. A divisão em versículos foi introduzida em 1551, pelo impressor parisiense Robert Stephanus. Ambas as divisões tinham por objetivo facilitar a consulta e as citações bíblicas, e foi aceita por todos, incluindo os judeus;
Foi escrita e reproduzida em diversos materiais, de acordo com a época e cultura das regiões, utilizando tábuas de barro, peles, papiro e até mesmo cacos de cerâmica;

Com exceção de alguns textos do livro de Ester e de Daniel, os textos originais do Antigo Testamento foram escritos em hebraico, uma língua da família das línguas semíticas, caracterizada pela predominância de consoantes;
A palavra “Hebraica" vem de "Hebrom", região de Canaã que foi habitada pelo patriarca Abraão em sua peregrinação, vindo da terra de Ur;

Os 39 livros que compõem o Antigo Testamento (sem a inclusão dos apócrifos) estavam compilados desde cerca de 400 a.C., sendo aceitos pelo cânon Judaico, e também pelos Protestantes, Católicos Ortodoxos, Igreja Católica Russa, e parte da Igreja Católica tradicional;

A primeira Bíblia em português foi impressa em 1748. A tradução foi feita a partir da Vulgata Latina e iniciou-se com D. Diniz (1279-1325).


2.1. Quem Escreveu?

Não foi uma única pessoa que escreveu a Bíblia. Muita gente deu a sua contribuição: homens e mulheres, jovens e velhos, pais e mães de família, agricultores e operários de várias profissões; gente instruída que sabia ler e escrever e gente simples que só sabia contar histórias; gente viajada e gente que nunca saiu de casa; sacerdotes e profetas, reis e pastores, pobres e ricos, gente de todas as classes, mas todos convertidos e unidos na mesma preocupação de construir um povo irmão, onde reinassem a fé e a justiça, o amor e a fraternidade, a verdade e a fidelidade, e onde não houvesse opressor nem oprimido.

Todos deram a sua colaboração, cada um do seu jeito. Todos foram professores e alunos, uns dos outros. Mas aqui e acolá, a gente ainda percebe como alguns, às vezes, puxavam a brasa um pouquinho para o seu lado.


2.2. Quando Foi Escrita?

A Bíblia não foi escrita de uma só vez. Levou muito tempo, mais de mil anos. Começou em torno do ano 1250 antes de Cristo, e o ponto final só foi colocado cem anos depois do nascimento de Jesus. Aliás, é muito difícil saber quando foi que começaram a escrever a Bíblia, pois, antes de ser escrita, a Bíblia foi narrada e contada nas rodas de conversa e nas celebrações do povo. E antes de ser narrada e contada, ela foi vivida por muitas gerações num esforço teimoso e fiel de colocar Deus na vida e de organizar a vida de acordo com a justiça.

No começo, o povo não fazia muita distinção entre contar e escrever. O importante era expressar e transmitir aos outros a nova consciência comunitária, nascida neles a partir do contato com Deus. Faziam isto contando aos filhos os fatos mais importantes do seu passado. Como nós hoje decoramos a letra dos cânticos, assim eles decoravam e transmitiam as histórias, as leis, às profecias, os salmos, os provérbios e tantas outras coisas que, depois, foram escritas na Bíblia. A Bíblia saiu da memória do povo. Nasceu da preocupação de não esquecer o passado.


2.3. Onde Foi Escrita?

A Bíblia não foi escrita no mesmo lugar, mas em muitos lugares e países diferentes. A maior parte do Antigo Testamento e do Novo Testamento foi escrita na Palestina, a terra onde o povo vivia, por onde Jesus andou e onde nasceu a Igreja. Algumas partes do Antigo Testamento foram escritas na Babilônia, onde o povo viveu no cativeiro no século VI antes de Cristo. Outras partes foram escritas no Egito, para onde muita gente emigrou depois do cativeiro. O Novo Testamento tem partes que foram escritas na Síria, na Ásia Menor, na Grécia e na Itália, onde havia muitas comunidades, fundadas ou visitadas pelo apóstolo São Paulo.

Ora, os costumes, a cultura, a religião, a situação econômica, social e política de todos estes povos deixaram marcas na Bíblia e tiveram a sua influência na maneira de a Bíblia nos apresentar a mensagem de Deus aos homens.


2.4. Em Que Língua Foi Escrita?

A Bíblia não foi escrita numa única língua, mas em três línguas diferentes. A maior parte do Antigo Testamento foi escrita em hebraico. Era a língua que se falava na Palestina antes do cativeiro. Depois do cativeiro, o povo de lá começou a falar o aramaico. Mas a Bíblia continuou a ser escrita, copiada e lida em hebraico. Para que o povo pudesse ter acesso à Bíblia, foram criadas escolinhas em toda parte. Jesus deve ter freqüentado a escolinha de Nazaré para aprender o hebraico. Só uma parte bem pequena do Antigo Testamento foi escrita em aramaico . Um único livro do Antigo Testamento, o livro da Sabedoria, e todo o Novo Testamento foram escritos em grego. O grego era a nova língua do comércio que invadiu o mundo daquele tempo, depois das conquistas de Alexandre Magno, no século IV antes de Cristo.
Assim, no tempo de Jesus, o povo da Palestina falava o aramaico em casa, usava o hebraico na leitura da Bíblia, e o grego no comércio e na política. Quando os apóstolos saíram da Palestina para pregar o Evangelho aos outros povos, eles adotaram uma tradução grega do Antigo Testamento, feita no Egito no século III antes de Cristo para os judeus imigrantes que já não entendiam o hebraico nem o aramaico. Esta tradução grega é chamada Septuaginta ou Setenta. Na época em que ela foi feita, a lista (cânon) dos livros sagrados ainda não estava concluída. E assim aconteceu que a lista dos livros desta tradução grega ficou mais comprida do que a lista dos livros da Bíblia hebraica.

É desta diferença entre a Bíblia hebraica da Palestina e a Bíblia grega do Egito que veio a diferença entre a Bíblia dos protestantes e a Bíblia dos católicos. Os protestantes preferiram a lista mais curta e mais antiga da Bíblia hebraica, e os católicos, seguindo o exemplo dos apóstolos, ficaram com a lista mais comprida da tradução grega dos Setenta. Há sete livros a mais na Bíblia dos católicos: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, os dois livros dos Macabeus, além de algumas partes de Daniel e Ester. São chamados “deuterocanônicos”, isto é, são da segunda (dêutero) lista (cânon).


2.5. O Assunto Da Bíblia

O assunto da Bíblia não é só doutrina sobre Deus. Lá dentro tem de tudo: doutrina, histórias, provérbios, profecias, cânticos, salmos, lamentações, cartas, sermões, meditações, filosofia, romances, cantos de amor, biografias, genealogias, poesias, parábolas, comparações, tratados, contratos, leis para a organização do povo, leis para o bom funcionamento da liturgia; coisas alegres e coisas tristes; fatos verdadeiros e fatos simbólicos; coisas do passado, coisas do presente e coisas do futuro. Enfim, tudo que dá para rir e para chorar. Tem trechos da Bíblia que querem comunicar alegria, esperança, coragem e amor; outros trechos querem denunciar erros, pecados, opressão e injustiças. Tem páginas lá dentro que foram escritas pelo gosto de contar uma bela história para descansar a mente do leitor e provocar nele um sorriso de esperança.

A Bíblia parece um álbum de fotografias. Muitas famílias possuem um álbum assim ou, ao menos, têm uma caixa onde guardam as suas fotografias, todas misturadas, sem ordem. De vez em quando, os filhos despejam tudo na mesa para olhar e comentar as fotografias. Os pais têm que contar a história de cada uma delas. A Bíblia é o álbum de fotografias da família de Deus. Nas suas reuniões e celebrações, o povo olhava as suas “fotografias”, e os pais contavam as histórias. Era o jeito de integrar os filhos no povo de Deus e de transmitir-lhes a consciência da sua missão e da sua responsabilidade.

A Bíblia não fala só de Deus que vai em busca do seu povo, mas também do povo que vai em busca do seu Deus e que procura organizar-se de acordo com a vontade divina. Ela conta as virtudes e os pecados, os acertos e os enganos, os pontos altos e os pontos baixos. Nada esconde, tudo revela. Conta os fatos do jeito que foram lembrados pelo povo. Histórias de gente pecadora que procura ser santa. Histórias de gente opressora que procura converter-se e ser irmão. Histórias de gente oprimida que procura libertar-se.

A Bíblia é tão variada como é variada a vida do povo. A palavra BÍBLIA vem do grego e quer dizer LIVROS. A Sagrada Escritura tem 73 livros. É quase uma biblioteca. Poucas bibliotecas paroquiais têm a variedade dos 73 livros da Bíblia!


2.6. A Semente Da Bíblia

Longo e demorado foi o mutirão do povo, do qual surgiu a Bíblia. Surgiu como surgem as árvores. Elas nascem de uma semente bem pequena, escondida no chão, e crescem até esparramar os seus galhos que oferecem sombra, alimento e proteção. A Bíblia nasceu de um chamado de Deus, escondido na vida do povo, e cresceu até esparramar os seus 73 galhos pelo mundo inteiro.

O chamado de Deus que deu início ao mutirão do povo é a palavra de Deus, por ele dirigida a todos os homens, também a nós hoje. Este apelo de Deus, escondido no chão da vida, foi descoberto primeiro por Abraão, depois por Moisés e pelo povo oprimido no Egito. Eles deram a sua resposta e fizeram nascer o começo do povo de Deus. Uma vez nascido o povo, trataram de não deixar morrer a semente. Os coordenadores convocavam a comunidade, os pais reuniam os filhos para transmitir a seguinte mensagem: “Nós éramos escravos no Egito. Gritamos ao Deus dos nossos pais, e ele ouviu o nosso clamor. Chamou Moisés e, com a ajuda de Deus e de Moisés, conseguimos a nossa libertação. Deus fez uma aliança conosco: Ele quer ser o nosso Deus, e nós temos que ser o seu povo, observando a sua Lei, vivendo como irmãos!”

Esta mensagem é o veiozinho verde que brotou da semente. É o núcleo da fé do povo de Deus. Uma história de libertação, da qual nasceu um compromisso mútuo! Semente bem pequenina! Cabia em umas poucas frases! Mas esta história foi contada e cantada, em prosa e verso, de mil maneiras, pelo povo libertado. Foi daí que nasceram os 73 livros da Bíblia, que hoje se esparramam pelo mundo inteiro, oferecendo sombra, alimento e proteção a quem o deseja. Nasceram, para que também nós possamos descobrir hoje o mesmo apelo de Deus em nossa vida e para que iniciemos a mesma caminhada de libertação.


2.7. O Adubo Que Fez Crescer A Semente Da Bíblia

Não é qualquer chão que serve para que uma árvore possa crescer. O canteiro, onde a semente da Bíblia criou raízes e de onde lançou os seus 73 galhos em todos os setores da vida, foi à celebração do povo oprimido, ansioso de se libertar.

A maior parte da Bíblia começou a ser decorada para poder ser usada nas celebrações, e foi escrita ou colecionada por sacerdotes e levitas, os responsáveis pela celebração do povo. Além disso, as romarias e as peregrinações, os santuários com as suas procissões, as festas e as grandes celebrações da aliança, o templo e as casas de oração (sinagogas), os sacrifícios e os ritos, os salmos e os cânticos, a catequese em família e o culto semanal, a oração e a vivência da fé, tudo isso marca a Bíblia, do começo ao fim!

O coração da Bíblia é o culto do povo! Mas não qualquer culto. É o culto ligado à vida do povo, onde este se reunia para ouvir a palavra de Deus e cantar as suas maravilhas; onde ele tomava consciência da opressão em que vivia ou que ele mesmo impunha aos irmãos; onde ele fazia penitência, mudava de mentalidade e renovava o seu compromisso de viver como um povo irmão; onde reabastecia a sua fé e alimentava a sua esperança; onde celebrava as suas vitórias e agradecia a Deus pelo dom da vida.

É também no culto que deve estar o coração da interpretação da Bíblia. Sem este ambiente de fé e de oração e sem esta consciência bem viva da opressão que existe no mundo, não é possível agarrar a raiz de onde brotou a Bíblia, nem é possível descobrir a sua mensagem central.


2.8. A Mensagem Central Da Bíblia

Qual é, em poucas palavras, a mensagem central da Bíblia? A resposta não é fácil, pois depende da vivência. Se você gosta de uma pessoa e alguém lhe pergunta: “Qual é, em poucas palavras, a mensagem desta pessoa para você?”, aí não é fácil responder. O resumo da pessoa amada é o seu nome! Basta você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome, e este lhe traz à memória tudo o que a pessoa amada significa para você. Não é assim? Pois bem, o resumo da Bíblia, a sua mensagem central, é o Nome de Deus!

O Nome de Deus é Javé, cujo sentido ele mesmo revelou e explicou ao povo (cf. Ex 3,14). Javé significa Emanuel, isto é, Deus conosco, Deus presente no meio do seu povo para libertá-lo. Deus quer ser Javé para nós, quer ser presença libertadora no meio de nós! E ele deu provas bem concretas de que esta é a sua vontade. A primeira prova foi à libertação do Egito. A última prova está sendo, até hoje, a ressurreição de Jesus, chamado Emanuel (cf. Mt 1,23). Pela ressurreição de Jesus, Deus venceu as forças da morte e abriu para nós o caminho da vida.

Por tudo isso é difícil resumir em poucas palavras aquilo que o Nome de Deus evocava na mente, no coração e na memória do povo por ele libertado. Só mesmo o povo que vive e celebra a presença libertadora de Deus no seu meio, pode avaliá-lo.

Na nossa Bíblia, o Nome Javé foi traduzido por Senhor. É a palavra que mais ocorre na Bíblia. Milhares de vezes! Pois o próprio Deus falou: “Este é o meu Nome para sempre! Sob este Nome quero ser invocado, de geração em geração!” (Ex 3,15). Faz um bem tão grande você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome da pessoa amada. Aquilo ajuda tanto na vida! Dá força e coragem, consola e orienta, corrige e confirma. Um Nome assim não pode ser usado em vão! Seria uma blasfêmia usar o Nome de Deus para justificar a opressão do povo, pois Javé significa Deus libertador!

O Nome Javé é o centro de tudo. Tantas vezes Deus o afirma: “Eu quero ser Javé para vocês, e vocês devem ser o meu povo!” Ser o povo de Javé significa: ser um povo onde não há opressão como no Egito; onde o irmão não explora o irmão; onde reinam a justiça, o direito, a verdade e a lei dos dez mandamentos; onde o amor a Deus é igual ao amor ao próximo. Esta é a mensagem central da Bíblia; é o apelo que o Nome de Deus faz a todos aqueles que querem pertencer ao seu povo.


2.9. A Esperança Dos Profetas

Caindo e levantando, o povo foi andando, procurando ser o povo de Deus e buscando atingir para si e para os outros os bens da promessa divina. Muitas vezes, porém, esquecia o chamado de Deus e se acomodava. Em vez de servir a Deus, queria que Deus servisse ao projeto que eles mesmos tinham inventado. Invertiam a situação. Era nestas horas que surgiam os profetas para denunciar o erro e para anunciar de novo à vontade de Deus ao povo.

A Bíblia conserva as palavras de quatro profetas chamados Maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, e de doze Menores. Muitos outros profetas são mencionados na Bíblia. O maior deles foi Elias. Os profetas, cujos nomes, gestos e palavras foram conservados, são como flores. Elas supõem um chão, uma semente e uma planta. O chão, a semente e a planta destes profetas são as comunidades que lhes transmitiram a fé; são os inúmeros profetas locais, cujos nomes foram esquecidos. É como hoje. Os grandes profetas são conhecidos no país inteiro, mas eles só puderam surgir graças ao povo anônimo e fiel das suas comunidades.

Diante das falhas constantes do povo, desviado por seus falsos líderes, os profetas começaram a alimentar no povo uma nova esperança. Diziam: no futuro, o projeto de Deus será realizado através de um enviado especial, um novo líder, fiel e verdadeiro, chamado Messias.

Foi esta esperança maior, alimentada pelos profetas, que sustentou o resto fiel do povo e o ajudou a superar as duras crises da sua caminhada. O resto fiel eram sobretudo os pobres que punham sua esperança unicamente em Deus (cf. Sf 3,12). Como a mãe enfrenta as dores do parto, porque tem amor à vida nova que ela carrega dentro de si, assim os pobres enfrentavam as dores da caminhada, porque tinham amor à promessa divina que eles carregavam dentro de si. Eles acreditavam na vida nova que dela haveria de surgir para todos os homens. Esta vida nova chegou, finalmente, em Jesus, o Messias.

A esperança dos pobres se realiza em Jesus e nas comunidades

Para realizar a missão do Messias, Deus não mandou qualquer um. Mandou o seu próprio Filho! Jesus, o Filho de Deus, realizou a promessa do Pai, trouxe a libertação para o povo e anunciou a Boa-Nova do Reino aos pobres.

A pregação de Jesus não agradou a todos. Os doutores da Lei, os fariseus, os saduceus e os sacerdotes imaginavam a vinda do Reino como uma simples inversão da situação, sem mudança real no relacionamento entre os homens e entre os povos. Eles, os judeus, dominados pelos romanos, ficariam por cima e seriam os senhores do mundo, e os que estavam por cima ficariam por baixo.

Mas não era assim que Jesus entendia o Reino do Pai. Ele queria uma mudança radical. Para ele, o povo de Deus tinha de ser um povo irmão e servidor, e não um povo dominador a ser servido pelos outros povos (cf. Mt 20,28).

Jesus iniciou esta mudança: colocou-se do lado dos pobres, marginalizados pelo sistema dos líderes judeus, denunciou este sistema como contrário à vontade do Pai e convocava a todos para mudar de vida. Mas os grandes não quiseram. O que era Boa Notícia para os pobres era má notícia para os grandes, pois Jesus exigia deles que abandonassem os seus privilégios injustos e as suas idéias de grandeza e de poder. Eles preferiram as suas próprias idéias, rejeitaram o apelo de Jesus e o mataram na cruz com o apoio dos romanos.

Foi aí que o Pai mostrou de que lado ele estava. Usando o seu poder que protege a vida, ressuscitou Jesus. Animados por este mesmo poder de Deus que vence a morte, os seguidores de Jesus, os primeiros cristãos, organizaram a sua vida em pequenas comunidades, viviam em comunhão fraterna, tinham tudo em comum e já não havia mais necessitados entre eles (cf. At 2,42-44).

Assim, a vida nova, prometida no Antigo Testamento e trazida por Jesus, apareceu aos olhos de todos na vida dos primeiros cristãos. Eles se tornaram “a carta de Cristo, reconhecida e lida por todos os homens” (cf. 2Cor 3,2-3). Neles apareceu o Novo Testamento! É na vida comunitária dos primeiros cristãos, sustentada pela fé em Jesus, vivo no meio deles, que apareceu uma amostra clara do projeto que o Pai tinha em mente quando chamou Abraão e quando decidiu libertar o seu povo do Egito.

Jesus trouxe a chave para o povo poder entender o sentido verdadeiro da longa caminhada do Antigo Testamento. Os primeiros cristãos, usando esta chave, conseguiram abrir a porta da Bíblia e souberam entender e realizar a vontade do Pai. O Antigo Testamento é o botão, o Novo Testamento é a flor que nasceu do botão. Um se explica pelo outro. Um sem o outro não se entende. Como eles, assim também nós devemos reler a nossa história à luz de Cristo, com a ajuda da Bíblia, e tentar descobrir dentro dela o apelo de Deus, desde o seu começo.


2.10. Como Ler Com Proveito A Bíblia

A experiência da ressurreição, vivida em comunidade, foi o grande estalo que iluminou os olhos e revelou aos cristãos o sentido da Bíblia e da vida. A história dos discípulos de Emaús mostra isso bem claramente, pois Jesus aparece aí como o intérprete da Bíblia e da vida.

Quando, no dia de Páscoa, os dois discípulos andavam pela estrada, Jesus caminhava com eles, mas eles não o reconheceram (cf. Lc 24,15-16). Faltava a luz nos olhos. Faltava a experiência da ressurreição. Quando, finalmente, o reconheceram na partilha do pão, Jesus desapareceu (cf. Lc 24,30-31). Pois nesta hora, Jesus entrou para dentro deles, e eles mesmos ressuscitaram. Venceram o desânimo e voltaram para Jerusalém, onde estavam os poderes que, matando Jesus, tinham matado neles a esperança. Mas eles já não os temiam. Neles estava a força maior, a força da vida que vence a morte.

A Bíblia teve um papel muito importante nesta transformação que se operou nos dois discípulos. Jesus usou a Bíblia não tanto para enriquecer os dois com idéias bonitas, mas muito mais para suscitar neles aquela mudança do medo para a coragem, do desespero para a esperança, da separação para o reencontro, da fuga para o enfrentamento, da morte para a vida. Vale a pena à gente ver mais de perto o jeito como Jesus usou a Bíblia. Ele serve de modelo para nós.



2.11. O Primeiro Círculo Bíblico

A conversa de Jesus com os discípulos de Emaús foi o primeiro Círculo Bíblico. Nele aparecem três pontos que devem estar sempre presentes na leitura e na interpretação que fazemos da Bíblia.

1. Reflexão sobre a realidade: Jesus soube criar um ambiente de conversa e, com muito jeito, forçou os dois a falar sobre os problemas da vida que eles estavam sentindo. Na conversa apareceu toda a realidade: a tristeza, o desânimo, a frustração dos dois, a sua falsa esperança de um messias glorioso, a decisão do governo e dos sacerdotes de condenar Jesus, a cruz e a morte, a conversa das mulheres que provocou espanto, a incapacidade dos dois em crer nos pequenos sinais de esperança (cf. Lc 24,13-24).

2. Estudo da própria Bíblia: Jesus usou a Bíblia não tanto para interpretar e ensinar a Bíblia, mas muito mais para com ela interpretar os fatos da vida e animar os dois rapazes. Refletiu com eles, fez ver que estavam errados na sua maneira de explicar os fatos e mostrou, com a luz da Bíblia, que os fatos não estavam escapando da mão de Deus. Isto exigia dele um conhecimento profundo da Bíblia. Jesus conhecia a Bíblia. Junto com os dois, ele soube encontrar aqueles textos de Moisés e dos profetas que pudessem trazer alguma luz para a situação de tristeza e mudar as idéias erradas que eles tinham na cabeça. Jesus não teve medo de criticar interpretações erradas da Bíblia. Pois o texto bíblico tem um sentido certo que deve ser respeitado, para evitar que se manipule o texto em favor das próprias idéias, como os judeus faziam (cf. Lc 24,25-27).

3. Vivência comunitária da fé na Ressurreição: Jesus andou com eles, conversou, criou um ambiente de abertura e teve a paciência de escutá-los. Falando da vida e da Bíblia, agradou tanto, que o coração dos dois se esquentou, e eles chegaram a convidá-lo para o jantar. Ficou com eles, sentou à mesa, rezou com eles e fez a partilha do pão, como se tornou costume entre os cristãos que tinham tudo em comum. Jesus não só falou, mas colocou gestos bem concretos de amizade. Ora, tudo isso é o ambiente da comunidade, onde se procura viver como irmão. É aí que se faz a experiência da ressurreição, do Cristo vivo no meio de nós; a experiência de Javé, Deus libertador (cf. Lc 24, 28-32).

Quando estes três elementos estão presentes na interpretação da Bíblia, aí a Bíblia atinge o seu objetivo e acontece o milagre da mudança: os discípulos descobrem a força da palavra de Deus presente nos fatos, começam a praticá-la e tudo se transforma; os olhos se abrem, as pessoas mudam; a cruz, vista como sinal de morte e de desespero, torna-se sinal de vida e de esperança; o medo desaparece, a coragem reaparece; as pessoas se unem, se reencontram e começam a partilhar entre si a sua experiência de ressurreição; os poderes que oprimem e matam já não causam desânimo; os dois discípulos começam a reler a sua própria caminhada e descobrem que tudo começou quando Jesus falava com eles sobre a vida e sobre a Bíblia; a fé se afirma, a esperança se renova e o amor abre novos caminhos (cf. Lc 24,33-35).





2.12. A Reflexão Sobre A Realidade

Interpretar a Bíblia, sem olhar a realidade da vida, é o mesmo que manter o sal fora da comida, a semente fora da terra, a luz debaixo da mesa; é como galho sem tronco, olhos sem cabeça, rio sem leito.

Pois a Bíblia não é o primeiro livro que Deus escreveu para nós, nem o mais importante. O primeiro livro é a natureza, criada pela palavra de Deus; são os fatos, os acontecimentos, a história, tudo que existe e acontece na vida do povo; é a realidade que nos envolve. Deus quer comunicar-se conosco através da vida que vivemos. Por meio dela, ele nos transmite a sua mensagem de amor e de justiça.

Mas nós homens, por causa dos nossos pecados, organizamos o mundo de tal maneira e criamos uma sociedade tão torta, que já não é mais possível perceber claramente a voz de Deus nesta vida que vivemos. Por isso, Deus escreveu um segundo livro que é a Bíblia. O segundo livro não veio substituir o primeiro. A Bíblia não veio ocupar o lugar da vida. A Bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o sentido da vida e perceber a presença da palavra de Deus dentro da nossa realidade.

Santo Agostinho resumiu tudo isso da seguinte maneira: a Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrita para nos ajudar a decifrar o mundo, para nos devolver o olhar da fé e da contemplação e para transformar toda a realidade numa grande revelação de Deus.

Por isso, quem lê e estuda a Bíblia, mas não olha a realidade do povo oprimido nem luta pela justiça e pela fraternidade, é infiel à palavra de Deus e não imita Jesus Cristo. Ele é semelhante aos fariseus que conheciam a Bíblia de cor, mas não a praticavam.


2.13. O Estudo Da Própria Bíblia

O estudo da Bíblia deve ser feito com muita seriedade e disciplina. Considere a leitura que você faz da Bíblia como uma conversa sua com Deus. Ora, quando a gente conversa com alguém, deve tomar as palavras do outro do jeito que elas são ditas por ele. Eu não posso colocar as minhas idéias dentro das palavras do outro. Isto seria uma falta de honestidade. Não posso tirar do texto nenhum sentido, a não ser aquele que está dentro do texto. Convém ser severo e exigente consigo mesmo neste ponto. Nunca manipular o texto em favor das suas próprias idéias!

Mas um texto pode ser lido com duas mentalidades: com a mentalidade avarenta de um pão-duro ou com a mentalidade generosa de um mão-aberta. A gente deve ser generoso e nunca avarento na interpretação da Bíblia. Isto quer dizer: ler não só nas linhas, mas também nas entrelinhas. Em todos os textos sempre há duas coisas: as coisas ditas abertamente nas linhas, e as coisas ditas veladamente nas entrelinhas. As duas vêm do autor do texto, e as duas são igualmente importantes.

Como descobrir o que o autor diz nas entrelinhas? Usando a inteligência, o coração e a imaginação, perguntando sempre: 1. Quem é que está falando no texto e a quem? 2. O que ele está querendo dizer e por quê? 3. Em que situação ele está falando ou escrevendo e qual o jeito que ele usa para dar o seu recado? 4. Qual o ambiente que ele cria por meio das suas palavras e qual o interesse que ele defende? Estas e outras perguntas ajudam a gente a puxar a cortina e a perceber o que existe nas entrelinhas do texto bíblico.

Além disso, as introduções de cada livro, as notas ao pé das páginas, as referências para outros textos bíblicos, os mapas geográficos e o vocabulário que você encontra no fim desta Bíblia, foram feitos para ajudá-lo na descoberta do sentido certo e exato do texto. E aqui convém lembrar o seguinte: nadar se aprende nadando. O conhecimento da Bíblia se adquire através de uma prática constante de leitura, se possível diária.


2.14. A Vivência Comunitária Da Fé Na Ressurreição

Este terceiro ponto, muitas vezes esquecido, é muito importante. É como a caixa de ressonância de um violão. Sem ela, as cordas das palavras bíblicas não produzem a música de Deus no coração do leitor. Como criar esta caixa de ressonância da interpretação da Bíblia?

1. Jesus soube criar um ambiente de amizade e de abertura, onde foi possível ele ler a Bíblia junto com os dois discípulos de Emaús. Este é o primeiro passo: criar um ambiente de amizade e de abertura entre as pessoas, não para esconder os problemas da vida atrás de um sorriso, mas para poder discuti-los e enfrentá-los, mesmo que for preciso ir a Jerusalém, de noite, na escuridão.

2. A Bíblia surgiu da caminhada de um povo oprimido que, apoiado na promessa de Deus, buscava a sua libertação. A sua interpretação deve ser feita a partir do povo crente e oprimido que hoje busca a sua libertação. A interpretação da Bíblia não pode ser neutra, nem pode ser feita separada da vida e da história do nosso povo. Ela deve ser o fermento de Deus neste processo de “conversão” e de mudança da morte para a vida, do medo para a coragem, do desespero para a esperança, da opressão para a liberdade, que hoje marca a vida das nossas comunidades.

3. A Bíblia nasceu dentro de uma comunidade de fé. É só com o olhar de fé desta mesma comunidade que pode ser captada e entendida plenamente a sua mensagem. Este olhar não se compra com dinheiro nem com estudo. Adquire-se vivendo na comunidade, participando da sua caminhada e das suas lutas. Mesmo quando leio a Bíblia sozinho, devo lembrar sempre que estou lendo o livro da comunidade. Ninguém tem o direito de explicar a Bíblia do jeito que convém a ele, contrário aos interesses da comunidade. Pois a Bíblia não é propriedade privada de ninguém. Ela foi entregue aos cuidados do povo de Deus, para que este realize a sua missão libertadora, e revele aos olhos de todos a presença de Javé, o Deus vivo e verdadeiro. Com outras palavras, a Bíblia deve ser interpretada de acordo com o sentido que lhe dá a comunidade, a Igreja. O modo de pensar das comunidades do Brasil e da América Latina foi resumido em Medellín e em Puebla. O modo de pensar das comunidades do mundo inteiro é definido pelos Concílios Ecumênicos e pela palavra autorizada dos papas.

4. A Bíblia é, antes de tudo, palavra de Deus para nós. Por isso, a sua interpretação e leitura devem ser feitas com a convicção de fé de que Deus nos fala por meio da Bíblia. E ele fala não para que nós nos fechemos no estudo e na leitura da Bíblia, mas para que, pela leitura e pelo estudo da Bíblia, possamos descobrir a palavra viva de Deus dentro da história da nossa comunidade e do nosso povo.

5. A interpretação da Bíblia não depende só da inteligência e do estudo, mas também do coração e da ação do Espírito Santo. O Espírito de Jesus deve ter a oportunidade de nos falar quando lemos a Bíblia. Por isso, além do estudo e da troca de idéias, a leitura da Bíblia deve ter os seus momentos de silêncio e de oração, de canto e de celebração, de troca de experiências e de vivências.


3. O DIA DA BÍBLIA

O Dia da Bíblia surgiu em 1549, quando o Bispo Cranmer, que vivia na Grã-Bretanha, incluiu no livro de orações do rei Eduardo VI um dia especial para que a população intercedesse em favor da leitura do Livro Sagrado. A data escolhida foi o Segundo Domingo do Advento (o Advento é celebrado nos quatro domingos que antecedem o Natal). Foi assim que o segundo domingo de dezembro se tornou o Dia da Bíblia.

Hoje, um dia dedicado às Escrituras Sagradas é comemorado em cerca de 60 países. Em alguns desses países, a data é celebrada no segundo domingo de setembro, numa referência ao trabalho do tradutor Jerônimo, na Vulgata, conhecida tradução da Bíblia para o latim. (Para os católicos setembro é o Mês da Bíblia).

No Brasil, o Dia da Bíblia começou a ser celebrado pelos primeiros missionários evangélicos que, oriundos da Europa e Estados Unidos, a partir de 1850, aqui vieram semear a Palavra de Deus. Durante o período do Império, a liberdade religiosa aos cultos protestantes era muito restrita, o que impedia manifestações públicas dos evangélicos. Por volta de 1880, esta liberdade foi crescendo e o movimento evangélico, juntamente com o Dia da Bíblia, se popularizando.

Pouco a pouco, as diversas denominações evangélicas institucionalizaram a tradição do Dia da Bíblia, que ganhou ainda mais força com a fundação da Sociedade Bíblica do Brasil, em junho de 1948. Em dezembro deste mesmo ano, houve um das primeiras manifestações públicas do Dia da Bíblia, em São Paulo, no Monumento do Ipiranga.

Hoje, as comemorações do segundo domingo de dezembro mobilizam, todos os anos, milhares de cristãos em todo Brasil. Em alguns estados e em vários municípios, o Dia da Bíblia é data oficial.



4. HISTÓRIA DO NOVO TESTAMENTO

A) Primeiro, a Comunidade

Em torno de Jesus tinha-se reunido a comunidade dos que tinham acreditado nele. Depois da ressurreição, depois que tinham sido iluminados pelo Espírito Santo, os discípulos começaram a viver e a propagar a mensagem cristã. Eles aceitavam as Escrituras Sagradas que tinham recebido da tradição judaica. Já agora, porém, iluminados pelo Espírito Santo e assistidos continuamente pelo Cristo, liam as Escrituras sob uma nova luz. Temos uma imagem clara dessa situação nova na passagem de Lucas (24,13-32), que nos conta a aparição de Jesus aos dois discípulos que iam a caminho de Emaús. Iam, naquele domingo da ressurreição, conversando sobre os últimos acontecimentos. Tinham ficado desorientados com a morte de Jesus e já não sabiam o que pensar. Disse-lhes, então, Jesus (vers. 25):

"Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram... Começou, então, a explicar todas as passagens das Escrituras Sagradas que falavam dele, começando com os livros de Moisés e os escritos de todos os profetas".

Aliás, o apóstolo Paulo (2Cor 3,14) diz que somente a aceitação de Jesus pela fé nos abre os olhos para uma exata compreensão do Antigo Testamento.

Pois bem. A comunidade cristã, a Igreja, vivia e anunciava a salvação pela fé em Jesus. Sua preocupação era conservar fielmente a mensagem recebida e dar um testemunho sobre os fatos presenciados pelos apóstolos e discípulos. É o que transparece nas palavras de Paulo (1Cor 15,3):
"O que eu recebi e entreguei a vocês é o mais importante: que o Cristo morreu pelos nossos pecados, como está escrito nas Escrituras Sagradas; que ele foi sepultado e que ressuscitou no terceiro dia como está escrito nas Escrituras; e que apareceu a Pedro e depois aos doze apóstolos..."

A primeira preocupação da comunidade não foi escrever um livro. Foi viver e transmitir uma vida. Isso não diminui o valor das Escrituras, da Igreja. Ajuda-nos, porém, a perceber como surgiram e como têm sua compreensão ligada à compreensão da própria vida da Igreja.


B) A Comunidade Recebe As Escrituras Do Novo Testamento

Inicialmente, pois, a comunidade não tinha o "Antigo e o Novo Testamento".
Tinham a "Lei", os "Profetas" e os Escritos. E tinham as palavras de Jesus, sua vida e seus atos. Vamos ver, brevemente, como surgiu o Novo Testamento.

Se abrirmos agora uma edição do Novo Testamento, encontramos quatro divisões mais importantes: Evangelho, Atos dos Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. É bom sabermos logo que aconteceu também aqui o que já tinha acontecido com o Antigo Testamento: os livros ou as partes não estão colocados na ordem em que foram escritos. A ordem atual levou em conta a importância das partes e também as vantagens práticas de uma sistematização.

São estes os livros, ou as partes, que encontramos em o Novo Testamento:
1º) Evangelhos: de Mateus, de Marcos, de Lucas, de João.
2º) Atos dos Apóstolos.
3º) Epístolas: Em primeiro lugar, as cartas de Paulo aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses, a Timóteo, a Tito, a Filemon. Depois, a carta aos Hebreus, as cartas de Tiago, de Pedro, de João e de Judas.
4º) O Apocalipse de João.

Talvez você não imagine, mas a parte mais antiga do Novo Testamento são as duas cartas de Paulo aos Tessalonicenses, isto é: aos cristãos da comunidade de Tessalônica, uma cidade da Grécia. No capítulo 17(1-10) dos Atos dos Apóstolos, podemos ler a história das primeiras conversões nessa cidade. Paulo esteve em Tessalônica lá pelos meados do ano 5O d.C.(depois de Cristo), quando estava fazendo a sua segunda viagem missionária. Em 51, ele mandou sua primeira carta; a segunda é de 52 ou 53.

Com essas duas cartas, começou a formação do Novo Testamento: as comunidades começaram a colecionar e a trocar entre si os escritos dos apóstolos.

Pelos anos de 54 ou 55, foi escrita a carta para a igreja de Filipos. Entre 57 e 58, surgiram as duas cartas para a comunidade de Corinto e para a dos Gálatas. Possivelmente quando estava preso em Roma, entre 61 e 63, é que Paulo escreveu as cartas para os cristãos de Colossos e de Éfeso. Durante esse mesmo tempo teria escrito a pequena carta a Filemon, um cristão cujo escravo tinha fugido e fora convertido pelo apóstolo. As duas cartas a Timóteo e a carta mandada para Tito, devem ter sido enviadas entre 64 e 67.

A seguir, temos as cartas de Pedro, de Tiago e a Epístola aos Hebreus e a de Judas. Foram escritas, o mais tardar, nos decênios finais do primeiro século.

O primeiro evangelho a ser escrito foi provavelmente o de Marcos, antes ainda da destruição de Jerusalém, acontecida no ano de 70. Segundo a opinião de vários especialistas, o evangelho de Marcos foi precedido por uma primeira redação do evangelho de Mateus, feita em aramaico. Redação essa que depois foi reelaborada, dando origem à nossa atual edição grega. Não podemos saber exatamente quando isso aconteceu.

Nem podemos saber com certeza quando foi escrito o evangelho de Lucas. Alguns acham que foi escrito antes do ano 70; outros preferem dizer que os evangelhos de Lucas e Mateus surgiram lá pelo ano 80.

Esses três evangelhos são bastante semelhantes entre si, apresentando quase os mesmos fatos, quase na mesma ordem. Por isso são chamados de Evangelhos Sinóticos, isso porque poderiam ser colocados lado a lado para serem lidos ao mesmo tempo.

Os Atos dos Apóstolos, que narram os primeiros tempos da Igreja, dando um realce maior às pessoas de Pedro e de Paulo, são como que uma continuação do Evangelho de Lucas. Possivelmente esse livro foi escrito lá pelo ano 80.

Como a parte mais recente do Novo Testamento, temos finalmente o evangelho, as cartas e o Apocalipse de João. Até algum tempo atrás havia escritores que atrasavam até o século segundo o aparecimento desses livros. Atualmente, há um certo acordo que marca o aparecimento desses escritos entre os anos 90 e 100.

Nem seria preciso repetir. Esta apresentação é apenas inicial e sumária. É só através de um estudo mais cuidadoso e demorado de cada livro que poderíamos examinar as perguntas sobre o seu autor e a data de seu aparecimento. De momento, o importante é apenas situar no tempo o aparecimento da Bíblia.


4.1. O Novo Testamento Em Grego

Os primeiros manuscritos do Novo Testamento que chegaram até nós são algumas das cartas do Apóstolo Paulo destinadas a pequenos grupos de pessoas de diversos povoados que acreditavam no Evangelho por ele pregado.
A formação desses grupos marca o início da igreja cristã. As cartas de Paulo eram recebidas e preservadas com todo o cuidado. Não tardou para que esses manuscritos fossem solicitados por outras pessoas. Dessa forma, começaram a ser largamente copiados e as cartas de Paulo passaram a ter grande circulação.
A necessidade de ensinar novos convertidos e o desejo de relatar o testemunho dos primeiros discípulos em relação à vida e aos ensinamentos de Cristo resultaram na escrita dos Evangelhos que, na medida em que as igrejas cresciam e se espalhavam, passaram a ser muito solicitados. Outras cartas, exortações, sermões e manuscritos cristãos similares também começaram a circular.
O mais antigo fragmento do Novo Testamento hoje conhecido é um pequeno pedaço de papiro escrito no início do Século II d.C. Nele estão contidas algumas palavras de João 18.31-33, além de outras referentes aos versículos 37 e 38. Nos últimos cem anos descobriu-se uma quantidade considerável de papiros contendo o Novo Testamento e o texto em grego do Antigo Testamento.



5. A NOSSA BÍBLIA E OS SEUS ORIGINAIS

A Bíblia que nós agora usamos é um livro que adquirimos numa livraria, um livro editado há pouco tempo, por uma dessas modernas editoras. É um livro que lemos em língua portuguesa. Mas nós já sabemos que a Bíblia surgiu há muito tempo atrás, livro escrito em outras línguas. Isso nos leva a fazer algumas perguntas: A Bíblia que temos atualmente corresponde aos originais escritos pelos autores? A nossa tradução em língua portuguesa corresponde aos originais escritos em língua hebraica, aramaica e grega?


5.1. As Línguas Originais Da Bíblia

Os originais da Bíblia foram escritos em três línguas: o hebraico, o aramaico e o grego. O hebraico é uma língua muito antiga que já existia antes mesmo de os hebreus, isto é, os judeus aparecerem como um povo identificável. Nessa língua hebraica, foi escrito quase todo o Antigo Testamento. Algumas partes, porém, chegaram até nós apenas em aramaico, uma outra língua adotada mais tarde pelo povo judeu. Nessa língua, temos cinco capítulos do Livro de Daniel, algumas passagens do Livro de Esdras e umas frases do profeta Jeremias. Talvez também essas partes tenham sido escritas originalmente em hebraico. Outras partes chegaram até nós numa tradução em língua grega (incluindo aqui o cânon protestante e católico): o Livro do Eclesiástico (um terço do original hebraico foi descoberto em 1896), os Livros de Baruc, de Tobias, o 1º Livro dos Macabeus, o de Judite e algumas partes de Daniel e Ester. Na língua grega, foram escritos dois livros do Antigo Testamento: o Livro da Sabedoria e o 2º Livro dos Macabeus.

O Novo Testamento foi escrito originalmente em grego, que era a língua mais usada no tempo. Só o Evangelho de Mateus é que foi escrito originalmente em aramaico. Esse original, porém, perdeu-se e só conhecemos a segunda redação feita em grego.


5.2. As Primeiras Traduções

A Bíblia foi sempre considerada como um livro muito importante, um livro sagrado que devia ser conhecido por todos. É por isso que surgiram as traduções para os que não podiam compreender a língua original.

A primeira tradução foi feita uns 200 ou 300 anos antes de Cristo. Os judeus que viviam no Egito já não entendiam o hebraico. Foi feita, então, a tradução grega, chamada de “Tradução dos Setenta. Ganhou este nome porque, como contavam, tinha sido feita por setenta sábios. Essa tradução grega do Antigo Testamento era a Bíblia usada pelos primeiros cristãos e, segundo ela, são feitas quase todas as citações que aparecem em o Novo Testamento”.

Nos primeiros séculos depois de Cristo foram feitas outras traduções que procuravam uma fidelidade maior ao original hebraico.

Mas não eram só os judeus que viviam no estrangeiro que tinham dificuldade para entender o original hebraico da Bíblia. A partir do cativeiro na Babilônia, mesmo os judeus da Palestina já não falavam o hebraico. Nas Sinagogas (lugar de reunião da comunidade), continuava a ser lido o texto hebraico, mas havia sempre uma pessoa encarregada de fazer uma tradução em aramaico para que todos pudessem compreender a palavra de Deus. Essas traduções foram, aos poucos, sendo postas por escrito e eram mais ou menos fiéis ao texto original. Isso porque, muitas vezes, faziam uma espécie de tradução adaptada às situações do momento.


5.3. As Traduções Cristãs

Já nos primeiros séculos da Igreja foram feitas diversas traduções, parciais ou totais, para uso das comunidades cristãs. Até o fim do século segundo, a maioria das comunidades cristãs, mesmo nas regiões de influência romana, falava e entendia o grego popular. Aos poucos, porém, a língua latina, o latim, reconquistou terreno. Começaram assim a surgir às traduções em latim. Parece que a mais antiga é uma tradução chamada de “Ítala porque fora feita na ltália, e recomendada por Santo Agostinho”.

Em 382, o Papa Dâmaso pediu que Jerônimo, um homem muito preparado, fizesse uma revisão da tradução dos Salmos. Terminada essa encomenda, em 392, ele começou uma tradução de todo o Antigo Testamento, diretamente do hebraico. O trabalho ficou pronto em 405. É a tradução conhecida como “Vulgata Latina. Foi esse o texto usado na primeira edição impressa da Bíblia, feita por Gutenberg, em 1542”.

Como vimos, o Novo Testamento tinha sido escrito em grego. A primeira tradução em latim foi feita provavelmente lá pelo ano 150. Também do Novo Testamento São Jerônimo fez uma nova edição, revendo as traduções anteriores. É bom notar que, além dessa tradução latina, a antigüidade conheceu traduções em várias outras línguas.

Ainda fica em pé a pergunta inicial: será que todas essas traduções conservaram fielmente o sentido da Bíblia original? Vamos, então, ver como a Bíblia chegou até nós.


5.4. Os Originais Do Antigo Testamento

Vimos como foi longa a história da formação da Bíblia. Foi um trabalho realizado ao longo de muitos séculos, feito por muitas pessoas, em muitos lugares e circunstâncias diversas. Quando perguntamos se a nossa Bíblia corresponde aos originais, somos levados a perguntar também se esses originais escritos pelos próprios autores ainda existem. Não. Não existem mais. Nem isso é de se admirar. Os livros antigos, mesmo em sua fase de maior aperfeiçoamento técnico, eram "rolos" ou cadernos de pergaminho ou papiro. Esses materiais não podiam atravessar sem estragos os séculos. A traça, a umidade, o uso, as viagens, as guerras e os incêndios fizeram o seu trabalho de destruição.

A cópia mais velha de todo o Antigo Testamento em hebraico é lá do ano 950 depois de Cristo. Estava guardada na cidade de Alepo, na Síria. Durante algum tempo pensou-se que tivesse sido destruída num incêndio em 1950. Depois reapareceu e atualmente se conserva em Jerusalém. Desse texto existe uma cópia feita em 1008, que serviu como base para a edição atual do texto hebraico.

A situação é semelhante, e até mesmo pior, para os outros escritos antigos. Podemos dar alguns exemplos. Sófocles, Ésquilo, Aristófanes são alguns escritores gregos. Entre os originais escritos por eles e as cópias que temos de suas obras, há uma distância de 1400 anos. Essa distância é de 1600 anos para as obras de Eurípides e Catulo; 1300, para as obras de Platão.

Até a alguns anos atrás, o manuscrito mais antigo de uma parcela do Antigo Testamento era do século quarto depois de Cristo. Em 1902, foi encontrado, no Egito, um pedaço de papiro do século segundo depois de Cristo, contendo o Decálogo e um fragmento do Deuteronômio. Foram encontrados ainda outros papiros mais recentes, todos contendo apenas fragmentos do texto bíblico.

Em 1947, houve uma importante descoberta. Um pastor árabe estava procurando uma cabra perdida, nas margens rochosas do Mar Morto. Enquanto estava descansando, atirou uma pedra numa fenda nas rochas. Escutou um barulho de alguma coisa que se quebrava. Foi investigar, encontrou uma gruta e lá dentro alguns potes de barro, ainda cobertos com a tampa original. Continham rolos de pergaminho. Mais tarde foram feitas outras investigações e encontrou-se uma verdadeira biblioteca antiga. Seria a biblioteca de um antigo mosteiro de uma seita hebraica, abandonado pouco antes da destruição de Jerusalém, lá pelo ano 68 d.C.

Os rolos de pergaminho continham principalmente textos da Bíblia: eram cópias muito antigas, algumas do ano 200 ou 300 a.C. Pelos estudos feitos até agora, esses antigos manuscritos confirmam a fidelidade do nosso texto hebraico atual. Isso vem confirmar o que já tinha sido observado: apesar de todas as variantes encontradas nos manuscritos, podemos dizer que houve um interesse muito grande pela conservação fiel dos textos originais. As diferenças nunca são tão grandes a ponto de modificar fundamentalmente o sentido das passagens.

Que haja essas diferenças nos manuscritos, isso podemos compreender facilmente. Antigamente as cópias eram feitas à mão, uma a uma. Muitas vezes uma pessoa ia ditando o texto para vários copistas. Bastava que um ouvisse mal uma palavra e já havia uma variante no texto. Outras vezes, o copista esquecia uma letra ou uma palavra, ou repetia ou trocava. Ou, então, o texto original não estava muito claro. Acontecia também que um ou outro copista achava bom corrigir o texto original. É por isso que os especialistas fazem estudos cuidadosos, comparam os diversos manuscritos e assim estabelecem cientificamente o texto mais seguro. Nesse trabalho levam em conta também as antigas traduções. Esse estudo chama-se "Crítica Textual"; tem regras e métodos que agora não vêm ao caso.


5.5. Os Originais Do Novo Testamento

Atualmente temos uns cinco mil manuscritos, sendo que uns cinqüenta e três contêm todo o Novo Testamento. A situação do Novo Testamento é muito melhor que a de todos os escritores antigos. Da maioria deles temos manuscritos somente a partir do século nono d.C., e assim mesmo em número bem reduzido. Do Novo Testamento temos dezessete manuscritos do século quarto e vinte e sete do século sexto. Temos ainda citações encontradas em escritores do século segundo. Isso quer dizer que entre os originais e as cópias temos a distância de uns 300 anos apenas. Foi encontrado até um papiro do ano 130 que reproduz uma passagem do evangelho de João. É uma cópia feita uns quarenta anos depois do original do evangelista.


5.6. A Bíblia Atual É Fiel Aos Originais

Durante séculos os especialistas fizeram um longo trabalho de estudo e de comparação entre as diversas cópias do Antigo e do Novo Testamento. Chegaram à conclusão de que os nossos textos atuais são fiéis aos originais. É verdade que o texto hebraico atual apresenta alguns defeitos. Com o auxílio, porém, das antigas traduções é possível fazer a sua correção quase perfeita. A situação do Novo Testamento é muito melhor. O texto grego que temos praticamente não apresenta dúvidas. Pelo menos dúvidas que tragam dificuldades insuperáveis. Segundo os especialistas, o nosso Novo Testamento em grego chegou até nós quase exatamente como foi escrito pelos seus autores lá na segunda metade do primeiro século.

E as nossas traduções correspondem ao original? A fidelidade dessas traduções passa por um duplo controle. Os estudiosos que conhecem as línguas originais podem dizer até que ponto a tradução está bem feita. E há também o controle exercido pela Igreja, que vigia para que as traduções não falsifiquem o sentido da revelação feita por Deus.


5.7. Todos Os Livros Da Bíblia

Abrindo a sua Bíblia no índice, você vai ver ali a relação de 66 "livros": 37 do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento. Parece muito natural. Vamos, porém, fazer uma pergunta:
Por que todos esses e só esses livros fazem parte da Bíblia? Por que só eles e todos eles são Palavra de Deus?

Os judeus tinham muitos livros. E nem todos eram considerados como fazendo parte das "Escrituras", do conjunto de escritos considerados como normativos, como lei, para a vida do povo. Principalmente nos últimos 300 anos antes de Cristo, apareceram muitos livros de fundo religioso, de estilo bastante semelhante aos livros da Bíblia. Esses livros até mesmo tentavam se apresentar com a mesma autoridade de Deus. E, no entanto, acabaram ficando fora da lista oficial dos livros sagrados.

O mesmo aconteceu nos primeiros tempos da Igreja. Dentre todos os livros que circulavam entre os cristãos, somente alguns foram aceitos como "escritos por Deus".

Houve, pois, uma escolha por parte dos judeus e dos cristãos. Vamos ver por que foi feita essa escolha, quando foi feita e como.




6. O CÂNON

A lista, o catálogo oficial dos livros que fazem parte da Bíblia tem um nome técnico: "Cânon. Sendo assim, os livros aceitos como” bíblicos “são chamados de” livros canônicos ““.

A palavra "Cânon" quer dizer: norma, regra, medida. Livros canônicos são, então, os livros sob a direção de Deus, e que devem servir de regra, medida e norma para a nossa fé e a nossa vida.


6.1. Por Que Existe O Cânon

Se antigamente já havia muitos livros e se hoje em dia existem muito mais, percebemos logo que é muito importante saber quais os livros que são realmente para nós a palavra de Deus.

Não basta que um livro se apresente como tendo sido escrito sob a inspiração de Deus. É preciso que saibamos com certeza que isso de fato aconteceu. É por isso que os judeus já se preocupavam com o estabelecimento de uma lista oficial dos livros sagrados. Há o texto de um escritor judeu do primeiro século, Flávio Josefo, que nos mostra bem a atitude dos judeus: "Os fatos mostram com que respeito nos aproximamos de nossos livros. Depois de tantos séculos, ninguém jamais permitiu aumento nenhum, nenhuma mudança. Todos os judeus, desde o nascimento, pensam que nesses livros se manifestam as vontades divinas. Por isso os respeitam e, se for o caso, estão prontos a morrer alegremente por eles. Já vimos muitos deles, no cativeiro, suportar as torturas e todos os gêneros de morte nos anfiteatros para não pronunciarem uma só palavra contrária a esses livros que os acompanham".

Vamos notar as palavras: "não mudaram nada,” não permitiram que nada fosse acrescentado. Através dos tempos conservavam fielmente os livros que, segundo sua fé, tinham sido dados por Deus para a orientação do povo. A mesma preocuparão encontramos nos primeiros séculos da Igreja.


6.2. Quando Foi Estabelecido O Cânon

Não será preciso lembrar que a Bíblia não surgiu toda de uma só vez. Vimos como foi ao longo dos séculos que os livros foram aparecendo.

Por outro lado, esses livros eram destinados para todo o povo e não estavam assim entregues aos cuidados de uma ou outra pessoa. Os judeus, e depois a Igreja, que recebiam esses livros de Deus, recebiam ao mesmo tempo uma assistência especial dele para que pudessem reconhecer os livros realmente inspirados e não se enganassem nessa escolha.

Levando isso em conta, podemos entender que aos poucos é que os judeus e a própria Igreja foram chegando a uma clareza completa. Assim, o Cânon, a lista dos livros inspirados, não apareceu de uma só vez.

No quinto século a.C., lá pelo ano 444, encontramos já uma lista mais ou menos definitiva estabelecida por Esdras. Ao que parece, já no século terceiro, estava pronta a lista oficial dos livros dos profetas. Pelo que sabemos, essas listas não foram feitas por decisão de alguma autoridade: foram surgindo da fé do povo guiado por Deus. É preciso lembrar, porém, que até os tempos de Cristo não havia uma unanimidade completa entre os judeus. Alguns aceitavam apenas os livros escritos originalmente em hebraico, ao passo que outros aceitavam também os livros escritos ou conservados em grego.

Qual o critério seguido pelos judeus para reconhecer um livro como inspirado? Não temos uma resposta exata. Podemos, porém, dizer com toda certeza que não bastam critérios racionais para reconhecermos um livro como inspirado. É só pela revelação divina que o podemos reconhecer. Por isso dizemos que foi sob a orientação divina que os judeus fizeram a escolha. Revelação divina que se vai manifestando aos poucos, cada vez com maior clareza.

Os cristãos aceitaram também os livros do Antigo Testamento como palavra de Deus. Até o século quarto ainda havia hesitações, mas com a influência de São Jerônimo e de Santo Agostinho chegaram a um consenso praticamente geral. Temos documentos de 393 (Concílio de Hipona), de 397 (Concílio de Cartago) e de 405 (carta de Inocêncio I, papa) que já trazem a lista atual.

O estabelecimento do Cânon do Novo Testamento passou por um processo semelhante. Os diversos livros “, principalmente as cartas dos apóstolos, só aos poucos é que foram chegando às diversas comunidades. Podemos assim compreender que não encontramos logo no primeiro século, e mesmo no segundo, uma lista completa dos livros todos da nova aliança”.

Na medida, porém, em que um escrito era reconhecido como sendo dos apóstolos, ou aprovado pelos apóstolos, era recebido com toda a veneração, tinha para todos o mesmo valor que as Escrituras do Antigo Testamento. Desde o começo a igreja recusava-se a admitir no Cânon qualquer livro não inspirado, do mesmo modo como fielmente conservava todos os reconhecidos como tais.

Isso aparece claramente na recusa dos "apócrifos". São assim chamados certos livros que imitam os Evangelhos, Cartas dos Apóstolos e outros escritos do Novo Testamento ou do Antigo. Foram todos definitivamente afastados do Cânon.

Lá pelo ano 150 mais ou menos, apareceu um herege chamado Marcião. Ele não aceitava como de Deus os livros do Antigo Testamento. E mesmo em o Novo Testamento ele andou fazendo uma seleção. Aceitava só o Evangelho de Lucas e dez Cartas de Paulo. A reação foi imediata: o herege foi acusado de falsificação da fé.

Em 1740 foi encontrado um documento antigo que, segundo os especialistas, seria a tradução latina de um original grego talvez do ano 180. O texto não está completo, mas ali temos, praticamente, o Cânon mais antigo que conhecemos, faltando apenas a Carta aos Hebreus. Esse documento, chamado de "Cânon de Muratori" por causa de seu descobridor, apresenta-se não como uma opinião de algum escritor, mas como uma decisão da autoridade da Igreja.

Seja lá como for, o certo é que as declarações da autoridade da Igreja foram precedidas por um longo período em que as comunidades cristãs, sob a direção dos bispos e principalmente sob a orientação do Espírito Santo, foram reconhecendo aos poucos os escritos inspirados por Deus. A aceitação do Cânon definitivo das Escrituras foi um ato de fé calmo e progressivo da Igreja. Como já vimos, em 393 e 397 houve o pronunciamento oficial das igrejas particulares da África. Em 405, temos uma declaração oficial do papa Inocêncio I. Depois será preciso esperar ainda muitos séculos para que haja um pronunciamento oficial da Igreja universal.

Em 1441, durante o Concílio Ecumênico de Florença, foi publicado um decreto com a lista completa dos livros inspirados. É um decreto que se apresenta como uma tranqüila exposição da doutrina católica já então tradicional. No século dezesseis, apareceram os assim chamados protestantes, que não aceitavam como fazendo parte da Bíblia alguns livros que a Igreja considerava inspirados. Por isso, em 1546, houve um outro decreto, no Concílio Ecumênico de Trento, que é fundamental e merece um estudo mais cuidadoso.


6.3. Decreto Do Concilio De Trento

Vamos primeiro ver o texto do decreto, numa apresentação mais simples e compreensível: "0 Concílio Ecumênico de Trento quer acabar com os erros e conservar na Igreja a doutrina evangélica pura. Essa doutrina está contida nos livros escritos e nas tradições orais. Seguindo o exemplo dos Padres da Igreja Antiga, o Concílio acolhe e venera com igual piedade e respeito todos os livros tanto do Antigo como do Novo Testamento, pois que Deus é o autor de ambos. O Concílio reconhece também o valor da tradição (não escrita). É conveniente dar por extenso a lista dos livros sagrados; isso para que ninguém possa ter dúvida e saiba claramente quais os livros que o Concílio reconhece como sagrados". (Vem aqui a lista como a temos hoje em dia). E o Concílio continua: “Seja anátema quem não aceitar como sagrados e canônicos esses livros e todas as suas partes como as costumam ler na Igreja Católica e as encontram na antiga edição da ‘Vulgata Latina...”.

Será, pois, muito importante saber quais são os livros inspirados por Deus e nos quais poderemos encontrar a verdade.

Além disso, havia alguns estudiosos que duvidavam da inspiração de um ou outro livro. Principalmente os protestantes começavam a causar confusões.

A declaração do Concílio de Trento tem para os católicos, o valor de uma definição dogmática, de fé; ninguém pode ser considerado católico se não a aceitar.

Para defesa própria os católicos alegam o seguinte: “O Concílio baseou-se pura e simplesmente na” tradição “, na convicção, na tranqüila certeza da Igreja através de séculos. Só a fé nos pode fazer aceitar que alguns livros sejam para nós a Palavra de Deus. Do mesmo modo, só a fé nos pode levar a aceitar que só estes e todos estes livros contenham a Palavra de Deus. A mesma fé que nos leva a acreditar em Cristo e na sua Igreja”.

Continuam ainda dizendo: “A fé continuada através dos séculos chama-se” tradição “. É fácil compreender o valor dessa tradição, dessa convicção universal da Igreja através do tempo: O Cristo prometeu que estaria para sempre junto com a sua Igreja. É ele quem guarda a Igreja para que nunca erre na sua fé, mas conserve sempre pura a revelação divina, sem perder nada, sem aumentar nada. O Concílio de Trento, reapresentando a lista dos livros da Bíblia, estava apenas defendendo o tesouro de vida e de fé dos cristãos de todos os tempos”.

Em 1870, o I Concílio do Vaticano reafirmou a aceitação do Cânon tradicional. Em 1965, o II Concílio do Vaticano, na Constituição Dogmática "Dei Verbum" ("A Palavra de Deus") reafirma que é pela tradição, conservada desde os tempos dos apóstolos, que a Igreja conhece o Cânon completo dos livros da Sagrada Escritura.



7. A BÍBLIA, PALAVRA DE DEUS

7.1. O Que Os Judeus Pensavam Da Bíblia

Lendo a própria Bíblia e também através de outros escritos antigos, podemos perceber claramente como os judeus se consideravam como um povo especial, escolhido por Deus. Tinham consciência de ser um povo ligado a Deus por uma aliança especial. Aliança que lhes garantia as promessas divinas e ao mesmo tempo lhes impunha obrigações especiais para com Deus. Viam nos acontecimentos de sua história uma intervenção particular de Javé, que orientava os passos do povo, que o apoiava e protegia quando permanecia fiel, que o castigava duramente nas suas infidelidades. Aceitavam como a coisa mais natural à presença de pessoas enviadas por Deus com a missão de orientar o povo nos momentos decisivos, chamá-lo de volta ao bom caminho, dar uma interpretação autorizada para os acontecimentos que o desnorteavam.

Foi nesse contexto que os judeus também sempre consideraram como muito especiais os livros que conservavam os escritos da Lei e as palavras dos Profetas.

Viam nesses livros a palavra de Deus, o testemunho de tudo quanto Javé tinha feito por eles, a orientação divina para as pessoas e para o povo todo.

A própria expressão "palavra de Deus" tinha um sentido muito particular e forte para eles. Segundo o nosso modo de pensar, a "palavra" serve para transmitir uma idéia, um conceito. Eles viam na "palavra" uma força. Principalmente a palavra de Deus era considerada uma força que fez surgir o mundo, que salva ou condena. A palavra de Deus é a própria onipotência divina em ação. Levando isso em conta, podemos compreender mais facilmente a importância que davam aos escritos que continham as "palavras de Deus".

No livro do Deuteronômio (31,24), vemos que a Lei de Deus Escrita foi colocada na Arca da Aliança, aquela espécie de sacrário onde guardavam o que havia de mais sagrado e que era como que o testemunho e a garantia da aliança de Deus e de suas promessas.

Os judeus chamavam seus livros de "Santos" e "Sagrados", porque sua origem estava numa intervenção divina. Já vimos às palavras de Flávio Josefo, aquele escritor judeu do primeiro século: "Os fatos mostram com que respeito nos aproximamos de nossos livros. Depois de tantos séculos, ninguém jamais permitiu aumento algum, nenhuma mudança. Todos os judeus, desde seu nascimento, pensam que nesses livros se manifestam a vontade divina. Por isso os respeitam e, se for o caso, estão prontos a morrer alegremente por eles. Já vimos muitos deles, no cativeiro, suportar as torturas, e todos os gêneros de morte nos anfiteatros para não pronunciarem uma só palavra contrária a esses livros que os acompanham".

Os rabinos, os mestres religiosos, sempre que iam lembrar uma passagem da Escritura diziam: "Assim disse Deus..." E o próprio livro que continha a palavra de Deus era considerado como um objeto sagrado que "manchava as mãos".

Também em o Novo Testamento encontramos um testemunho claro do pensamento tradicional dos judeus. Tanto Jesus como os apóstolos e até os fariseus, que faziam tanta oposição à mensagem evangélica, referiam-se à Escritura como sendo a suprema autoridade que não podia ser recusada por ninguém. Nos Evangelhos, são freqüentes as expressões: "como está escrito", "para que se cumprisse o que foi anunciado".


7.2. O Que Nos Diz O Novo Testamento

Há duas passagens que devemos examinar. A primeira é da 2ª Carta a Timóteo (3,16); a outra é da 2ª Carta de Pedro (1,20).

Timóteo era um discípulo de Paulo, escolhido por ele como responsável pela continuação de sua obra. Na segunda carta que lhe foi dirigida, lemos o seguinte: "Tu, porém, permaneces firme naquilo que aprendeste e de que tens convicção. Sabes de que mestre o aprendeste. E desde a infância conheces as sagradas letras. Elas te podem dar a sabedoria que conduz à salvação por meio da fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, convencer, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja completo, equipado para toda boa obra" (3,14-17). Nesse texto podemos notar o seguinte: Timóteo, desde pequeno, recebeu uma formação religiosa. Sabemos que era filho de judeus piedosos. Por essa formação, aprendeu a fé e aprendeu também a conhecer as Sagradas Escrituras como vindas de Deus. Como judeu e como cristão, ele acreditava que as Escrituras podiam “dar a sabedoria que conduz à salvação. Sabia também que tinham esse valor porque tinham sido inspiradas por Deus”.

Vamos examinar um pouco o sentido dessa palavra: "inspirada". É a tradução de uma palavra grega que poderia também ser traduzida por "soprada", assoprada “,” espirada. A palavra "espírito", que usamos tantas vezes, tem a mesma origem, liga-se à idéia de "sopro, vento". O vento sempre foi alguma coisa misteriosa para os antigos. Parece que vem de um lugar misterioso, pode ser sentido, mas não pode ser apalpado e segurado, parece um ser sem corpo. O vento é também uma força de destruição, ou uma brisa leve que refresca. Semelhante ao vento e igualmente misteriosa para os antigos era a nossa respiração. Enquanto respiramos, estamos vivos. E por isso chegaram quase a identificar a respiração com a própria vida, com a alma, com a força que nos faz viver. Espírito, sopro, respiração, era para eles essa realidade distinta de nosso corpo material e que nos faz viver. A partir daí passaram também a chamar de espírito, sopro, vento essa força misteriosa que parece arrastar o homem para o bem ou para o mal. Assim podemos compreender porque chamavam de "Espírito" a força divina, invisível e misteriosa que nos leva para a salvação. Muitas vezes encontramos na Bíblia referências ao "Espírito, Sopro de Javé", que orientava e dava força aos profetas, aos reis, a todos os que deviam fazer alguma coisa para o bem do povo. Por isso, quando Paulo diz que a Escritura Sagrada foi "inspirada, soprada, expirada" por Deus, está querendo dizer que a Bíblia vem de Deus, é a manifestação de Deus para nós. Quem escreveu a Bíblia escreveu porque foi movido, levado, “soprado, animado por Deus”.

A afirmação de Paulo é completada pelo que lemos na 2ª Carta de Pedro (1,20). Pedro insiste na veracidade da sua doutrina. Não está ensinando coisas inventadas. Ele mesmo viu a majestade do Cristo transfigurado no alto do monte. A sua doutrina é também confirmada pela Escritura, pela palavra dos profetas. É por isso que, a partir do versículo 19, Pedro é levado a falar do valor da palavra dos profetas que encontramos na Escritura. Suas afirmações valem, de certo modo, para a Bíblia toda: "Deveis saber, antes de tudo, que nenhuma profecia da Escritura é objeto de interpretação pessoal, visto como jamais uma profecia foi proferida por vontade humana; mas sim sob o impulso do Espírito Santo é que falaram os homens da parte de Deus" (1,20-21). Conforme o que vimos logo acima, podemos ler assim esse final: "sob o impulso do Sopro Santo é que falaram os homens da parte de Deus".


7.3. O Pensamento Da Igreja Antiga

Os mestres cristãos dos primeiros séculos continuaram ensinando que a Bíblia não é de modo algum um livro como os outros. Diziam que era: Palavra de Deus, Palavra do Espírito Santo, Palavra do Senhor, Livro de Deus, Carta enviada por Deus.

As duas passagens do Novo Testamento que vimos pouco atrás (2ª Carta de Pedro e principalmente 2ª Carta a Timóteo) conservaram a palavra "inspiração" e diziam que as Sagradas Escrituras foram "inspiradas por Deus", que os autores humanos da Bíblia foram "inspirados por Deus. Para explicar essa” inspiração, essa ação divina que levou alguns homens a escrever, eles diziam que "Deus falou, sugeriu, ditou" o que os autores deviam escrever. Porém, sempre lembravam que os homens escolhidos colaboraram realmente com Deus. Se Deus é o "autor" da Bíblia, também os homens foram de certo modo "autores".

Segundo eles, os hagiógrafos (escritores sagrados) não foram usados por Deus como instrumentos materiais e sem inteligência. De maneira alguma pensavam que eles estivessem apenas escrevendo materialmente o que Deus ia "ditando" de modo humano. Chegam mesmo a mostrar como cada autor humano da Bíblia conservou seu modo pessoal de escrever, cada um com sua própria cultura e instrução, seu jeito particular de organizar o assunto.

Com o passar do tempo, os teólogos e a própria igreja foram aprofundando essas idéias de modo que pudéssemos ter uma idéia mais aproximada e mais clara do significado dessa afirmação: “A Bíblia é a palavra escrita de Deus. É um livro inspirado por Ele. Nesse trabalho foi fundamental o esforço para afastar as falsas noções de inspiração”.


7.4. Só Pela Fé Sabemos Que A Bíblia É Inspirada

A Inspiração é uma iniciativa, uma ação de Deus. É assim uma realidade que, por si, escapa ao conhecimento humano. Para sabermos que Deus quis fazer seus ensinamentos chegarem até nós na Bíblia, de modo que a Bíblia fosse um livro "escrito por Deus", para sabermos isso era necessário que o próprio Deus o dissesse para nós. É só por uma revelação divina que podemos saber que a Bíblia foi inspirada.

Essa manifestação, essa revelação divina chega até nós através do ensino da Igreja. Ensino que se conservou sempre o mesmo em todos os tempos e em todos os lugares. Diante do ensinamento tradicional, diante da "Tradição" que é o ensinamento da Igreja conservado vivo através dos tempos, nós fazemos um ato de fé, de aceitação completa da palavra de Deus. É o próprio Deus que, com a sua ajuda, nos leva a essa aceitação. Sem essa ajuda, não podemos acreditar que a Bíblia seja realmente a palavra de Deus, não podemos acreditar que ele tenha "inspirado” algum homem para escreverem esses livros.

Por um ato de fé, acreditamos que todos aqueles sessenta e seis livros, e só eles, foram escritos por inspiração divina. É mais do que claro que só podemos aceitar isso se acreditarmos que, na Igreja, a nossa comunidade reunida por Jesus, encontramos a mensagem de Deus, a revelação de Deus para nós.

A Bíblia é um livro inspirado por Deus. Sendo assim, compreendemos facilmente que não pode errar quando nos ensina a mensagem divina, o como devemos viver para conseguirmos a salvação.

Vamos deixar claro desde logo o que pretendemos afirmar com essa frase. A Bíblia não erra nem pode errar em nenhuma das afirmações que Deus e os hagiógrafos quiseram de fato fazer e no sentido em que eles as fizeram. Não podemos acusar a Bíblia de erro se errada é a nossa compreensão de suas afirmações.

A Bíblia é a mensagem de Deus moldada em palavras humanas, em linguagem humana. A nossa linguagem é marcada, condicionada e limitada pelo nosso modo de pensar. Cada povo, cada tempo tem o seu modo de pensar, a sua mentalidade, a sua maneira de se exprimir. Cada povo tem a sua cultura própria, na qual surge também uma literatura característica, com suas regras e estilos próprios. Temos aí duas grandes dificuldades para a nossa exata compreensão do sentido e do alcance dos textos bíblicos.



8. A BÍBLIA NÃO ERRA

8.1. Mentalidade Hebraica E Linguagem Bíblica

Vamos, pois, estudar inicialmente um pouco da mentalidade dos judeus e do seu jeito de se exprimir.

No salmo 62, versículo 6, lemos: Minha alma será saciada de gordura e de tutano, de meus lábios alegres ressoará o teu louvor. Nós poderíamos dizer: O que é isso? a alma não come! É verdade. Mas, para o judeu, um bom almoço era aquele com muita carne gorda. Um bom almoço alegra. Por isso o salmista, em vez de dizer: "Minha alma estará feliz junto de Deus", diz: “Junto de Deus minha alma será alimentada com carnes gordas e tutano. Pode não parecer piedoso. Mas assim é que oravam”.

Como os orientais em geral, os judeus gostavam de falar de um modo teatral. Assim, sem muitas explicações, a idéia se tornava clara, quase palpável. Usavam expressões que, analisadas friamente, são exageros. Um rei, para dizer que seu exercito era numeroso, dizia que a poeira da Samaria não seria bastante para encher as mãos de seus soldados (1º Livro dos Reis 20,10). Em vez de dizer: "Houve fome em muitos países", diziam: "Houve fome na terra inteira. Há uma passagem do Evangelho (Lc 14,26) em que Jesus diz:” Quem não odiar pai, mãe... não pode ser meu discípulo. Odiar, no caso, significa amar menos do que ao Cristo.

A língua hebraica não tinha os mesmos recursos das línguas modernas. Nós temos palavras que indicam claramente a comparação entre os termos. Nós dizemos claramente: É maior o número dos chamados e menor o número dos escolhidos. Deus quer mais a misericórdia do que o sacrifício. Os judeus diziam: "Muitos são os chamados e poucos os escolhidos" (Mt 22,14). "Quero a misericórdia e não o sacrifício" (Mt 9,13).

Usavam comparações e imagens que não podem ser tomadas ao pé da letra. As idéias abstratas estavam ligadas a coisas materiais. Por exemplo:
Fraqueza: carne, cinza, poeira, flor que murcha, cera derretida.
Força: montanha, rochedo, bronze, tempestade, exército.
Glória: luz, brilho, relâmpago.
Fartura: leite, mel, água, azeite.

Esse modo concreto de pensar e de falar é que levava os judeus a falarem das coisas e de Deus usando expressões que realmente só se aplicam aos homens. Por exemplo: as cisternas, os montes, as árvores devem bater palmas e gritar de alegria; o sangue inocente pede vingança divina.
Deus tem rosto, nariz, ouvidos, boca, lábios, olhos, voz, braços, mãos e pés. Está revestido de um manto, senta-se num trono de rei. Tem desgosto, ódio, sentimentos de agrado, alegria, arrependimento. Tem até um nome próprio.

Na linguagem da Bíblia, os números não têm a mesma importância nem o mesmo significado que têm para nós. Quando damos um número, procuramos ser matematicamente exatos; interessa-nos a quantidade real. Para os judeus os números tinham todo um significado simbólico, indicava o sentido dos acontecimentos ou as qualidades das pessoas. A idade dos patriarcas, cem ou mais anos, não era contada em razão dos anos realmente vividos, mas em razão da veneração que mereciam, do quanto eram queridos por Deus. No capítulo quinto do Gênesis, encontramos uma série de dez gerações desde Adão até o patriarca Noé. Dez era apenas o número que indicava uma série completa e final. Falando de dez patriarcas, o hagiógrafo queria abarcar todos os acontecimentos, todas as gerações entre Adão e Noé, fossem lá quais e quantos fossem. Não estava, de modo algum, querendo ensinar que de fato tinha havido apenas uma série de dez gerações. De modo semelhante, Jesus fala das "dez virgens"; Paulo menciona os "dez adversários" que nos tentam separar do Cristo (Rm 8,38s), e os "dez vícios" que nos podem excluir do Reino de Deus (1Cor 6,9s). Os meses do ano são doze. Por isso esse número também significava a perfeição, a totalidade.

Quando damos um número, estamos de fato excluindo qualquer quantidade maior ou menor, a não ser que digamos claramente o contrário. Os judeus indicavam o número que interessava no momento. Podemos dar alguns exemplos: Mc. 11,2; Lc 19.30 e Jo 12,14 dizem que Jesus entrou em Jerusalém montado em um jumento. Mt 21,2 fala, porém, de uma jumenta e de um jumentinho. Mc 10,46 diz que, ao sair de Jericó, Jesus curou um cego; Mt 20,30 diz que dois foram os cegos curados. Além do mais, precisamos ainda lembrar que muitas vezes houve engano dos copistas na transcrição dos números. Engano fácil de entender já que os números eram representados com letras do alfabeto, bastante parecidas entre si.

Bastam esses exemplos para percebermos o cuidado necessário para termos uma correta compreensão dos textos bíblicos.


8.2. Gêneros Literários

Há ainda um outro fator que devemos levar em conta: o gênero literário, isto é, o tipo de composição que temos diante de nós. Isso vai determinar o sentido e o alcance que lhe podemos dar.

Se você ouve alguém contar uma história para crianças, uma dessas histórias em que os animais falam, aparecem fadas e bruxas, você não vai entender essa história do mesmo modo como entende as palavras de alguém que lhe está contando um fato real. Há muita diferença entre uma poesia ou a letra de uma canção e um trecho de um livro de ciências. Uma carta é bem diferente de uma reportagem ou uma notícia no jornal. Um discurso político não é a mesma coisa que um sermão. Aí estão exemplos de alguns "gêneros literários".

A poesia, a anedota, a narrativa histórica, cada gênero literário afinal tem suas regras próprias de composição. Têm a sua linguagem própria, suas palavras apropriadas, seu estilo. Escrevemos ou falamos de um jeito quando queremos ensinar; de outro, quando queremos divertir, ou agradar ou informar ou amedrontar, e assim por diante.

E mais. Cada "gênero literário" olha para a realidade de um lado diferente. Alguns querem apresentar um fato real, enquanto outros falam de fatos imaginários. Alguns podem aprofundar o assunto até os mínimos detalhes, outros ficam só em generalidades. E podemos ainda notar que essas formas de expressão variam conforme o povo, o tempo e o lugar.

Também na Bíblia podemos encontrar muitos gêneros literários bem característicos. Há narrativas, históricas ou não, há poesia, parábola, alegoria, profecia, apocalipse. E temos de levar isso em conta ou, então, vamos interpretar mal o que foi escrito. O que lemos no Apocalipse ou nos Profetas não pode ser compreendido do mesmo modo como se estivéssemos lendo os Evangelhos. Vamos entender mal as Epístolas de Paulo se esquecermos que são cartas, escritas em circunstâncias bem concretas. Precisamos conhecer e levar em conta as regras próprias de cada gênero literário para não lermos o que não foi pensado nem escrito pelos autores da Bíblia.


8.3. A Bíblia e a História

Lendo a Bíblia, encontramos narrativas que nos levam a perguntar: Isso aconteceu mesmo? Tanto mais que, muitas vezes, os dados fornecidos parecem não coincidir com o que atualmente conhecemos da História do antigo oriente.

No livro de Daniel, por exemplo, está escrito que o rei Belsazar da Babilônia era filho de Nabucodonosor. Ora, pelos documentos babilônicos, conservados em tabuinhas de argila, sabemos que Belsazar era de fato filho de Nabonide, quarto sucessor de Nabucodonosor. E o livro de Jonas, será que quer apresentar um fato histórico ou seria apenas uma narrativa com finalidade edificante? A mesma pergunta podemos levantar quanto aos livros de Jó e outros.

Não vem ao caso um exame detalhado de todos os problemas que se apresentam. Vamos ver apenas alguns princípios que nos ajudem a compreender o modelo literário de história usado em algumas partes da Escritura.

Em primeiro lugar é preciso saber que a Bíblia se interessa pela história na medida em que os acontecimentos têm uma importância religiosa. O que interessa ao hagiógrafo é apresentar o que Deus fez pela salvação dos homens e qual a resposta que os indivíduos, o povo e a humanidade deram à proposta divina. São mencionados, por isso, apenas os fatos realmente significativos sob esse aspecto. E mesmo esses fatos são narrados de forma a dar relevo ao seu significado religioso. Dados de menor importância são omitidos ou apresentados de um modo aproximativo, sem que se procure a exatidão que estamos acostumados a encontrar na história cientificamente escrita.

Não podemos, porém, esquecer que a Bíblia se apresenta como o relato do que Deus realmente fez para a nossa salvação. Não quer apresentar lendas e mitos. Afirma fatos: e a fé cristã é possível somente se aceitamos a realidade desses fatos fundamentais.

Por outro lado, é bom lembrar que as descobertas arqueológicas dos últimos tempos vêm confirmando dados até agora conhecidos apenas através das informações bíblicas. O que nos dá, mesmo do ponto de vista da ciência histórica, uma garantia bastante grande pelo menos quanto à exatidão dos fatos centrais.

Finalmente, há na Bíblia muitas narrativas que não precisam nem podem ser tomadas como apresentação de fatos realmente acontecidos. São "histórias" contadas com a finalidade de ensinar, exortar, animar.

A Bíblia não erra nem pode errar quando o hagiógrafo quer de fato apresentar o que realmente aconteceu. Nem tão pouco pode errar ao nos dar o sentido, a significação religiosa dos fatos.


8.4. A Bíblia e a Ciência

A nossa visão atual do mundo, dos seres vivos e da humanidade é muito diferente da que encontramos na Bíblia. Essa nossa visão é formada por conhecimentos certos, adquiridos através das descobertas científicas, ou se baseia em hipóteses, tentativas de explicação coerente para os fenômenos que ainda não chegamos a compreender perfeitamente. Na Bíblia, encontramos uma concepção do mundo bastante poética e ao mesmo tempo simplista. A terra era considerada como uma grande planície, cercada de altas montanhas (onde moravam o sol e a lua). Sobre essas montanhas, como se fossem imensos pilares, estaria apoiado o céu, imaginado como imensa cúpula de cristal onde estariam incrustadas as estrelas. A terra estaria flutuando sobre o mar imenso, sob o qual estava a habitação dos mortos. Acima dos céus, havia o grande mar superior, e mais alto ainda o céu, habitação de Deus. A origem do mundo e da humanidade era imaginada como acontecimento bem recente. A uma palavra de Deus, a criação teria surgido como um todo perfeito e definitivo. Os fenômenos naturais (ventos, raios, chuvas) eram atribuídos a uma intervenção direta de Deus. As doenças eram causadas por forças misteriosas. Baste isso para nos fazer compreender a dificuldade de alguns em conciliar as afirmações da Bíblia com os dados científicos agora conhecidos.

Houve tempo em que se tomaram atitudes extremas. Alguns, partindo dos conhecimentos atuais, viam a Bíblia cheia de erros e tentavam explicar tudo, até os milagres, de um modo natural. Outros tentavam colocar a Bíblia como critério para o nosso conhecimento científico da natureza; ou, então, queriam a todo o custo fazer uma acomodação entre suas afirmações e as da ciência. Tentativas que não serviam nem à verdade da Bíblia nem à verdade da ciência.

Para evitar mal-entendidos podemos seguir estes princípios:

1º) A Escritura não quer ensinar “ciência”. Quer apresentar-nos Deus, suas obras e seus planos para a nossa salvação. Como dizia um escritor antigo: "A Escritura ensina-nos como ir ao céu e não como vai indo o céu". É claro, porém, que, falando sobre Deus e suas obras, a Bíblia faz afirmações que têm conseqüências para a ciência. Por exemplo, quando afirma que tudo quanto existe não surgiu por si mesmo, mas foi criado por livre decisão de Deus.

2º) A Bíblia, quando fala dos fenômenos e realidades da natureza, fala ao modo do povo, fala segundo as aparências: o sol que nasce e se põe etc. E muitas vezes os hagiógrafos usam uma linguagem poética que personifica as forças da natureza.



8.5. A Bíblia e a Moral

Quem lê o Antigo Testamento poderia ficar chocado com certos costumes, mais ou menos tolerados, ou com certos episódios, mais ou menos escabrosos. Como é possível isso num livro escrito sob a inspiração divina?
A Bíblia fala sobre o homem. Fala, pois, do que há de bom e mau, mesmo em homens que deviam desempenhar um importante papel nos planos de Deus. Não simplesmente para falar do mal, nem muito menos para o ensinar. Quer mostrar até que ponto pode chegar à fraqueza humana, quer ensinar-nos a evitar todo pecado. Justamente essa presença do mal nos mostra como Deus foi pacientemente educando a humanidade para que pudesse afinal aceitar e viver o Evangelho de Cristo. Não impunha exigências maiores do que as assimiláveis por homens ainda presos a uma situação precária. Não estava interessado apenas em fazer cumprir um código moral; queria levar as pessoas a um crescimento interior. Sabia esperar o momento de mandar o seu Cristo que, diante das tolerâncias da lei antiga, iria anunciar: “... eu, porém, vos digo...!”.


A Bíblia não erra nem pode errar em nenhuma das afirmações que Deus e o hagiógrafo quiseram de fato fazer e no sentido em que as fizeram.



9. A BÍBLIA BEM INTERPRETADA

Até agora vimos vários elementos que são necessários para uma correta interpretação desse livro que para nós é a Palavra de Deus. Basta lembrar o que já vimos sobre a mentalidade e o modo de falar dos hebreus, os modelos literários usados antigamente, o ambiente em que lentamente foi sendo formada a Bíblia nas diversas épocas.

Levando tudo isso em conta, temos agora a Bíblia nas mãos e vamos começar sua leitura. O que devemos ainda levar em conta para não lermos o que não está escrito?


9.1. Na Bíblia Vamos Procurar A Palavra De Deus Para A Nossa Salvação

Não apenas uma palavra geral, dirigida a todos. Mas uma palavra dirigida especialmente a nós, a cada um de nós concretamente. Procurando a palavra de Deus, queremos saber o que ele tem para nós. Para ouvir alguém é preciso "escutar", e não querer fazer o outro dizer o que nós queremos ouvir. Deus é que as manifesta a nós, falando-nos de seus segredos mais íntimos e pessoais, segredos que nunca poderíamos descobrir por mais aguda que fosse a nossa inteligência. Quem já sabe, quem já tem idéias formadas, não pergunta, não escuta. A primeira condição para compreendermos bem a Bíblia será, pois, deixar de lado nossas idéias próprias.


9.2. Na Bíblia Encontramos A Revelação De Deus

Lentamente Deus foi preparando, educando a humanidade. Não teve pressa, soube esperar os momentos oportunos, não revelou tudo de uma só vez. Isso quer dizer que, ao ler a Bíblia, principalmente o Antigo Testamento, não podemos esperar encontrar desde o começo a mensagem completa de Deus. Não podemos estranhar se, mesmo nos profetas, encontramos visões parciais se comparadas com a nossa visão depois da realização das promessas em Cristo.

Mas, por outro lado, a revelação divina é um todo e a Bíblia forma um conjunto. Sendo assim, cada pormenor deve ser compreendido, levando-se em conta a revelação total.













10. OS MANUSCRITOS BIBLICOS E COMO CHEGARAM ATÉ NÓS

Fala-se em “Manuscritos originais”, quando, de fato, entre todas as sagradas escrituras não existe original algum, nem do Velho nem do Novo Testamento. Quando uns se tornaram velhos foram copiados, e os originais enterrados ou queimados pelos próprios amigos da Palavra de Deus. Outros foram destruídos pelos inimigos durante as guerras e perseguições que o antigo povo de Deus sofria de tempos em tempos. Mesmo quando o Novo Testamento foi escrito, parece que os documentos não existiam mais. Conseqüentemente, quando a Bíblia completa foi compilada pela primeira vez, constituiu em cópias hebraicas do Velho Testamento junto com uma tradução grega conhecida por Septuaginta, que significa setenta, porque foi feita por setenta homens. Na perda dos manuscritos originais, podemos ver a providência de Deus, porque, se fossem existentes hoje em dia documentos originais da letra de Moisés, Davi, Isaias, Daniel, Paulo ou João, o coração humano é tão suscetível á superstição, que seriam eles adorados, como foi à serpente de bronze nos dias de Ezequias (II Reis 18:4), anulando assim o seu propósito. A falta dos originais não nos deve assustar, porque há milhares de manuscritos gregos e hebraicos copiados dos originais, espalhados pelo mundo. Estes manuscritos datam desde a primeira metade do segundo século, data dos papiros mais antigos, e do quarto século para os unciais, escritos em letra maiúscula sobre pergaminho (pele de cabrito especialmente preparada). Quando as primeiras Bíblias foram impressas havia mais de 2.000 destes manuscritos. Hoje, existem muitos milhares. Este número é suficiente para estabelecer a genuinidade e a autenticidade da Bíblia. Existência dum livro antigo pode ser provada por muitas maneiras fora do original. Por exemplo, as referências a ele, as suas citações, as paráfrases, as narrações dele, os catálogos em que o livro esteja mencionado, as suas traduções e versões; os argumentos contra o seu ensino e as cópias existentes provam que tal livro existia.

Podemos verificar a idade dum manuscrito: 1) pela forma da letra em que está escrito; 2) pela maneira que as letras estão ligadas umas com as outras; e 3) pela simplicidade ou ornamentação das letras iniciais. Há ainda outro método, chamado Criticismo Textual, que procura estabelecer a idade de genuidade dos manuscritos em relação ás versões e ás obras dos anciãos das igrejas cristãs durante os primeiros séculos, pois estes citaram muitos textos das Escrituras. Os mais antigos manuscritos gregos são escritos em letras maiúsculas e quadradas, e todas as palavras em cada linha estão ligadas para poupar espaço. Achamos um exemplo desta ligação de palavras no versículo 11, do capitulo 53 de Isaias, na edição Almeida de 1913 e 1916: Às vezes, quando o copiador julgou que na linha não cabiam todas as letras grandes, começou a diminuí-las. Estes manuscritos são chamados Unciais. Os três mais velhos destes, pela providência de Deus, se acham ao cuidado de três ramos do cristianismo: o grego, o romano e o protestante. Um, o Sinaitico (conhecido como o Códex Alfa), está na biblioteca em Leningrado, como possessão da igreja Católica Grega, outro, no Vaticano (conhecido como o Códex B), pertence á Igreja Católica Romana, e se acha atualmente na biblioteca do Vaticano, em Roma. Outro, o Alexandrino (conhecido como o Códex A), está no Museu Britânico, em Londres. A história destes manuscritos é muito interessante.





10.1. O Manuscrito Vaticano

Está escrito na língua grega e data do século IV. É o mais antigo manuscrito conhecido no mundo. Por mais de 1.500 anos este manuscrito tem estado no mundo e é uma prova inegável de que, se a nossa Bíblia fosse uma invenção humana, teria sido falsificada antes do século IV, quando este manuscrito foi produzido. É uma obra de 4 volumes, com 700 páginas, e está escrita em três colunas na página, e contém quase a Bíblia inteira. Os livros são arranjados na seguinte ordem: Gênesis a II Crônicas; Esdras I e II; Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cantares de Salomão, Jó, Sabedoria, Siraque, Ester, Judite, Tobias; os doze profetas: Isaias, Jeremias, Baruque, Lamentações, Daniel; os Evangelhos; Atos, Epístolas Católicas, Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I e II Tessalonicenses e Hebreus. Dos livros da Bíblia que agora temos, faltaram a estes manuscritos os de I e II Timóteo, Tito, Filemon e o Apocalipse. O cristianismo estava privado do conhecimento da forma da letra deste manuscrito até que o Papa IX mandou tirar alguns fac-símiles.


10.2. O Manuscrito Sinaitico

Está em forma dum livro e cada página contém quatro colunas, exceto os livros poéticos do Velho Testamento, os quais têm somente duas. Não podemos deixar de contar por extenso a história do seu descobrimento. O Dr. Tischendorf, sábio alemão, muito famoso pela sua devoção á procura e ao estudo de manuscritos antigos da Bíblia, visitou o Convento de Santa Catarina, perto do monte Sinai, em 1844, quando descobriu este valioso documento. Todos que amam a Bíblia são devedores a ele por este grande descobrimento. No corredor do convento estava uma cesta cheia de folhas de pergaminho, pronta para serem atiradas ao fogo, e ele foi informado de que mais duas cestas já tinham sido queimadas. Ao examinar o conteúdo da cesta ficou surpreendido em encontrar folhas de pergaminho do Velho Testamento em grego, as mais velhas que ele tinha visto. Não pôde ocultar a sua alegria e foi-lhe permitido levar umas 43 folhas, mais ou menos. Ainda que as folhas fossem destinadas ao fogo, a sua alegria levantou suspeitas nos frades, e eles julgaram que, talvez, os manuscritos fossem mui valiosos e não consentiram que levasse mais. O Dr. Tischendorf depositou a porção das folhas na biblioteca real, em Leipzig, e deu-lhe o nome de “Códex Frederico Augustus”, em reconhecimento do patrocínio do rei da Saxônia. No ano de 1859 voltou mais uma vez ao convento, mas desta vez com uma comissão do imperador da Rússia. A sua visita estava a concluir-se sem resultado, quando, na véspera da sua partida, passeando na chácara com o despenseiro do convento, este o convidou a tomar uma refeição na sua cela. Enquanto estavam conversando, o frade puxou um embrulho enrolado em pano vermelho, que continha não somente alguns fragmentos vistos na primeira visita, mas ainda outras partes do Velho Testamento e o Novo Testamento completo, junto com alguns outros escritos. Mais tarde, por influência do imperador, o manuscrito foi obtido do convento e levado á biblioteca imperial em Leningrado, e tornou-se o mais precioso tesouro da igreja Grega.






10.3. O Manuscrito Alexandrino

Assim foi chamado porque fez parte da biblioteca em Alexandria. Foi também escrito em grego e data do século IV. É composto de quatro volumes e tem duas colunas em cada página. Foi ofertado por Cyrilo Lucar, patriarca de Constantinopla, ao rei Charles I da Inglaterra em 1628. E acha-se atualmente no Museu Britânico, em Londres. Contém a Bíblia inteira, exceto os seguintes trechos: Gênesis 14:14 a 17; 15:1 a 5, 16 a 19; 16:6 a 9; I Reis 12:18 a 14:9; Salmos 49:20 a 70:11; Mateus 1:1 a 25:6; João 6:50 a 8:52; II Coríntios 4:13 a 12:7.


10.4. O Códex De Efraim

Há mais um manuscrito de importância que merece menção. É o do século V, e é conhecido como o Códex de Efraim. Está na biblioteca de Paris. É descrito como o “Códex rescripto”, porque tem evidências de Ter sido escrito duas vezes, uma por cima da outra. O escrito original foi apagado para receber uma tradução grega ou algumas palavras de Efraim, o Sírio. No ano de 1453 passou para D. Catarina de Médicis, e por sua morte ficou como propriedade da biblioteca Real Francesa. Naquele tempo o seu valor não era conhecido. Em 1734, o manuscrito foi submetido, com bom êxito, a um tratamento químico para intensificar as letras antigas. Este manuscrito contém porções do Velho Testamento e fragmentos de cada livro do Novo Testamento.

10.5. Outros Manuscritos

Além dos livros que compõem o nosso atual Novo Testamento, havia outros que circularam nos primeiros séculos da era cristã, como as Cartas de Clemente, o Evangelho de Pedro, o Pastor de Hermas, e o Didache (ou Ensinamento dos Doze Apóstolos). Durante muitos anos, embora os evangelhos e as cartas de Paulo fossem aceitos de forma geral, não foi feita nenhuma tentativa de determinar quais dos muitos manuscritos eram realmente autorizados. Entretanto, gradualmente, o julgamento das igrejas, orientado pelo Espírito de Deus, reuniu a coleção das Escrituras que constituíam um relato mais fiel sobre a vida e ensinamentos de Jesus. No Século IV d.C. foi estabelecido entre os concílios das igrejas um acordo comum e o Novo Testamento foi constituído.

Os dois manuscritos mais antigos da Bíblia em grego podem ter sido escritos naquela ocasião - o grande Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus. Estes dois inestimáveis manuscritos contêm quase a totalidade da Bíblia em grego. Ao todo temos aproximadamente vinte manuscritos do Novo Testamento escritos nos primeiros cinco séculos.

Quando Teodósio proclamou e impôs o cristianismo como única religião oficial no Império Romano no final do Século IV, surgiu uma demanda nova e mais ampla por boas cópias de livros do Novo Testamento. É possível que o grande historiador Eusébio de Cesaréia (263 - 340) tenha conseguido demonstrar ao imperador o quanto os livros dos cristãos já estavam danificados e usados, porque o imperador encomendou 50 cópias para as igrejas de Constantinopla. Provavelmente, esta tenha sido a primeira vez que o Antigo e o Novo Testamento foram apresentados em um único volume, agora denominado Bíblia.

11. AS TRADUÇÕES DA BÍBLIA

Quando falamos em manuscritos, referimo-nos ás cópias nas línguas originais e em traduções, ás cópias nas línguas vernáculas em que a Bíblia é traduzida. As traduções são necessárias, por três razões: 1) Nem todos os povos falam a mesma língua; 2) as línguas estão sempre se modificando; 3) a palavra de Deus tem estado espalhada em muitos paises, de modo que, para melhor propaganda, é necessário tê-la na língua própria do povo. Entretanto, compete-nos lembrar que as traduções não são inspiradas por Deus; porém servem como um testemunho da existência e autenticidade dos originais. Se não pudermos ter as palavras exatas pelas traduções, ao menos teremos o sentido sem conflito qualquer de doutrina.

11.1. História Das Traduções

A Bíblia - o livro mais lido, traduzido e distribuído do mundo -, desde as suas origens, foi considerada sagrada e de grande importância. E, como tal, deveria ser conhecida e compreendida por toda a humanidade. A necessidade de difundir seus ensinamentos através dos tempos e entre os mais variados povos, resultou em inúmeras traduções para os mais variados idiomas e dialetos. Hoje é possível encontrar a Bíblia, completa ou em porções, em mais de 2.000 línguas diferentes.

11.2. A Primeira Tradução

Estima-se que a primeira tradução foi elaborada entre 200 a 300 anos antes de Cristo. Como os judeus que viviam no Egito não compreendiam a língua hebraica, o Antigo Testamento foi traduzido para o grego. Porém, não eram apenas os judeus que viviam no estrangeiro que tinham dificuldade de ler o original em hebraico: com o cativeiro da Babilônia, os judeus da Palestina também já não falavam mais o hebraico.

Denominada Septuaginta (ou Tradução dos Setenta), esta primeira tradução foi realizada por 70 sábios e contém sete livros que não fazem parte da coleção hebraica; pois não estavam incluídos quando o cânon (ou lista oficial) do Antigo Testamento foi estabelecido por exegetas israelitas no final do Século I d.C. A igreja primitiva geralmente incluía tais livros em sua Bíblia. Eles são chamados apócrifos ou deuterocanônicos e encontram-se presentes nas Bíblias de algumas igrejas.

Esta tradução do Antigo Testamento foi utilizada em sinagogas de todas as regiões do Mediterrâneo e representou um instrumento fundamental nos esforços empreendidos pelos primeiros discípulos de Jesus na propagação dos ensinamentos de Deus.

11.3. Outras Traduções

Outras traduções começaram a ser realizadas por cristãos novos nas línguas copta (Egito), etíope (Etiópia), siríaca (norte da Palestina) e em latim - a mais importante de todas as línguas pela sua ampla utilização no Ocidente. Por haver tantas versões parciais e insatisfatórias em latim, no ano 382 d.C, o bispo de Roma nomeou o grande exegeta Jerônimo para fazer uma tradução oficial das Escrituras.

Com o objetivo de realizar uma tradução de qualidade e fiel aos originais, Jerônimo foi à Palestina, onde viveu durante 20 anos. Estudou hebraico com rabinos famosos e examinou todos os manuscritos que conseguiu localizar. Sua tradução tornou-se conhecida como "Vulgata", ou seja, escrita na língua de pessoas comuns ("vulgus"). Embora não tenha sido imediatamente aceita, tornou-se o texto oficial do cristianismo ocidental. Neste formato, a Bíblia difundiu-se por todas as regiões do Mediterrâneo, alcançando até o Norte da Europa.

Na Europa, os cristãos entraram em conflito com os invasores godos e hunos, que destruíram uma grande parte da civilização romana. Em mosteiros, nos quais alguns homens se refugiaram da turbulência causada por guerras constantes, o texto bíblico foi preservado por muitos séculos, especialmente a Bíblia em latim na versão de Jerônimo.

Não se sabe quando e como a Bíblia chegou até as Ilhas Britânicas. Missionários levaram o evangelho para Irlanda, Escócia e Inglaterra, e não há dúvida de que havia cristãos nos exércitos romanos que lá estiveram no segundo e terceiro séculos. Provavelmente a tradução mais antiga na língua do povo desta região é a do Venerável Bede. Relata-se que, no momento de sua morte, em 735, ele estava ditando uma tradução do Evangelho de João; entretanto, nenhuma de suas traduções chegou até nós. Aos poucos as traduções de passagens e de livros inteiros foram surgindo.


11.4. As Primeiras Escrituras Impressas

Na Alemanha, em meados do Século 15, um ourives chamado Johannes Gutemberg desenvolveu a arte de fundir tipos metálicos móveis. O primeiro livro de grande porte produzido por sua prensa foi a Bíblia em latim. Cópias impressas decoradas a mão passaram a competir com os mais belos manuscritos. Esta nova arte foi utilizada para imprimir Bíblias em seis línguas antes de 1500 - alemão, italiano, francês, tcheco, holandês e catalão; e em outras seis línguas até meados do século 16 - espanhol, dinamarquês, inglês, sueco, húngaro, islandês, polonês e finlandês.

Finalmente as Escrituras realmente podiam ser lidas na língua destes povos. Mas essas traduções ainda estavam vinculadas ao texto em latim. No início do século 16, manuscritos de textos em grego e hebraico, preservados nas igrejas orientais, começaram a chegar à Europa ocidental. Havia pessoas eruditas que podiam auxiliar os sacerdotes ocidentais a ler e apreciar tais manuscritos.

Uma pessoa de grande destaque durante este novo período de estudo e aprendizado foi Erasmo de Roterdã. Ele passou alguns anos atuando como professor na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Em 1516, sua edição do Novo Testamento em grego foi publicada com seu próprio paralelo da tradução em latim. Assim, pela primeira vez estudiosos da Europa ocidental puderam ter acesso ao Novo Testamento na língua original, embora, infelizmente, os manuscritos fornecidos a Erasmo fossem de origem relativamente recente e, portanto, não eram completamente confiáveis.



12. A LXX

A mais antiga versão que existe é a Septuaginta. Esta é uma tradução livre, desviando-se em muitos lugares, da original hebraica. Foi feita em 285 antes de Cristo, provavelmente para os judeus que foram espalhados por todas as nações, uns 160 anos depois da volta de Neemias do cativeiro. Há muitas lendas acerca desta tradução: todavia, podemos dizer que foi a obra de setenta redatores em Alexandria. Sendo em grego, provavelmente, existia nos tempos de Jesus Cristo, mas não há evidência alguma de que ele ou os seus discípulos a usassem. Pelo contrário, é mais provável que Jesus falasse aramaico, salvo quando falou á mulher siro-fenícia (Mc. 7:6) em grego, afim de que ela o compreendesse. As palavras, nos Evangelhos que vêm a nós sem serem traduzidas são aramaicas: “Talita Cumi” (Mc. 5:41); “Eloí, Eloí, lamá-sabactani?” (Mc. 15:34). A Septuaginta tornou-se a base de muitas traduções. As outras traduções na língua grega que merecem menção são as seguintes: A versão de Áquila, um homem natural de Sinope, em Pontus, que se converteu do paganismo ao judaísmo. No século II ele procurou fazer uma tradução literal do texto hebraico. A versão de Teodotion, de Èfeso. Ele reviu a Septuaginta; e a versão de Symmachus de Samária. Tendo mencionado o manuscrito de Efraim no capítulo anterior, não podemos deixar de mencionar uma versão siríaca, chamada o Peshito, que foi completa no século II, provavelmente antes de 150. Foi preparada para provas do seu uso entre os seus patrícios. No segundo século, o latim suplantou o grego e ficou sendo por muitos anos a língua diplomática da Europa. Ao longo da costa setentrional da África organizaram-se umas igrejas compostas de pessoas de língua latina. Para essas, foi preparada uma versão latina. A sua história e origem são desconhecidas. O Velho Testamento foi vertido da Septuaginta, e ao Novo Testamento faltavam os seguintes livros: Hebreus, Tiago e II Pedro. Tertuliano e os seus contemporâneos usaram-na livremente. Esta tradução foi à base da Vulgata, a qual se tornou a Bíblia autorizada da Igreja Católica Romana. Notar-se-á, pela comparação destas versões antigas, que existiam todos os livros do Novo Testamento, menos o de II Pedro, no século II.



13. A VULGATA

No ano 383, São Jerônimo era um dos mais sábios do seu tempo, sendo secretário de Damasus, Bispo de Roma; este o convidou para corrigir e melhorar a Bíblia latina, então em uso nas igrejas do leste. Aquele sábio completou a revisão do Novo Testamento. Depois da morte de Damasus, Jerônimo mudou-se para Belém, onde fundou um mosteiro. Aos 80 anos de sua vida começou uma nova tradução do Velho Testamento, do hebraico para o latim. Esta é conhecida como a Vulgata, incluindo a apócrifa, e ficou sendo base de todas as traduções por mais de 1.000 anos. No concilio de Trento (1545-1547) foi proclamada autêntica, e um anátema foi pronunciado sobre qualquer pessoa que afirmasse que qualquer livro que nela se achava não fosse totalmente inspirado em toda parte. Concordando com a decisão do Concilio em ter uma edição autorizada e uniforme, Sixtus V publicou um texto em 1590. Porém os seguintes livros apócrifos foram omitidos: 3 e 4 Esdras; 3 Macabeus e a oração de Manasses que estava tão corrompida por erros tipográficos e outros, que Clemente VII sentiu a necessidade de retirá-la de circulação e publicar uma edição melhor em 1592. Esta tem sido a Bíblia seguida pelos católicos romanos em todas as suas traduções. A Bíblia Douai e o Novo Testamento publicado em Reims foram traduzidos da Vulgata.



14. A RENASCENÇA

Depois de longos anos de eclipse intelectual, o mundo experimentou uma renascença que se estendeu por toda parte na Europa. Os estreitos limites geográficos desapareceram pelo descobrimento de novas terras, e este contato repentino com novos povos, novas crenças e novas raças revivificou a inteligência sonolenta. Quando a cidade de Constantinopla caiu nas mãos dos turcos em 1453, os gregos eruditos fugiram para as bandas da Itália, levando as suas ciências e letras. Escolas foram estabelecidas, e o povo italiano interessou-se mais nos manuscritos, do Oriente do que na sua própria arte de estatuária. Com a vinda da língua grega para a Europa, um despertamento verdadeiro apoderou-se dos centros educacionais, e estudantes de toda parte procuraram os mestres da língua antiga. E, antes do fim do século XV, pelo desenvolvimento da imprensa, todos os autores latinos tornavam-se acessíveis e todas as obras gregas foram publicadas antes de 1520. Conseqüentemente, novas visitas intelectuais se apresentaram e o mundo experimentou verdadeiramente um novo nascimento. Durante mil anos a Vulgata teve a aceitação universal da igreja, e a Teologia tornou-se tradicional; porém esta nova época forneceu a chave para dar origem aos Evangelhos e o Novo Testamento. A teologia mística da Idade Média foi suplantada pela nova ênfase dada á pessoa de Cristo como se encontra nos evangelhos. O Novo Testamento em grego, pelo erudito Erasmo, em 1516, desafiou as tradições e pôs de parte a Vulgata. Erasmo tinha um desejo ardente de deixar a Bíblia clara e inteligível a todos. Disse ele: “Quero que mesmo a mulher mais fraca leia os Evangelhos e as epistolas de Paulo. Queria-os traduzidos em todas as línguas, para que fossem lidos e compreendidos por todos mesmo pelos sarracenos e turcos. Porém o primeiro passo necessário é fazê-los inteligíveis ao leitor. Eu almejo o dia quando o lavrador recite para si mesmo porções das Escrituras enquanto vai acompanhando o arado, quando o tecelão as balbucie ao ritmo da sua lançadeira e o viajante repasse o cansaço da sua viagem com os seus contos”. Esta era uma profecia verdadeira, a qual está sendo cumprida em nossos dias. Nesta época foi publicado um livro em que o autor previu que no futuro a religião verdadeira teria o seu centro na própria família, assim como o grande princípio de tolerância religiosa, e também que essa religião fosse divulgada por polêmica e apologética, e não por violência nem insulto ás religiões alheias. Com o novo impulso intelectual, a tradução da Bíblia na língua vernácula tomou aspecto. Os sábios e os iletrados, os ricos e os pobres, os reis e os plebeus, os eclesiásticos e os leigos, todos ajudaram neste glorioso trabalho. Outro tanto pode ser dito do impedimento que todas essas classes impuseram a esta obra de fama. Não podemos, nestes estudos limitados, tratar minuciosamente de todas as importantes traduções, ainda que gostaríamos de apresentar vários fatos históricos concernentes a algumas delas que têm influenciado no desenvolvimento do cristianismo. Lembrar-nos-emos que a nossa incumbência é a Bíblia na bela língua portuguesa. Entretanto, não podemos passar sem mencionar apenas algumas traduções notáveis. Devido ás perseguições que obrigaram os reformadores a fugir dum país para outro, é dificílimo acertar em que parte do continente a renascença teve a maior influência. Em toda parte rompeu a Reforma, e o Novo Testamento de Erasmo serviu como base de muitas traduções. Na Inglaterra, Guilherme Tyndale começou a dar a Bíblia ao povo na sua própria língua. Sendo severamente perseguido, foi obrigado a fugir para Colônia, onde tudo estava caminhando bem, quando um padre odioso, procurando saber do seu trabalho, embriagou os impressores e aprendeu o segredo da empresa. De Colônia, Tyndale foi a Worms, onde a Reforma de Lutero estava progredindo. Ali completou a sua tradução em 1526. Os exemplares foram enviados á Inglaterra secretamente em peças de fazenda, sacas de farinha de trigo, etc. Porém os inimigos da Palavra de Deus, junto com os católicos fervorosos, iniciaram uma campanha para acabar com esta tradução, e o bispo de Londres comprou todas as cópias que pôde achar e queimou-as em St. Paul’s Cross, nessa cidade. Felizmente, ainda mais cópias emanaram pelo dinheiro das que o bispo comprou. Em outubro de 1536, Guilherme Tyndale foi traído, estrangulado e depois queimado na estaca pelos católicos romanos, que sempre se opuseram á leitura da Bíblia no vernáculo. Antes do último suspiro este grande reformador rogou: “Deus abre os olhos do rei da Inglaterra”. Aqueles que queimaram a Bíblia de Tyndale mal supunham que três anos depois o rei dissesse: “Em nome de Deus deixo a Bíblia ser espalhada entre o povo”. A nova tradução que ele fez circular foi conhecida como a Grande Bíblia, devido ao seu tamanho, e também como a Bíblia Encadeada, porque estava acorrentada aos bancos das igrejas, para maior segurança. Infelizmente, mais tarde o rei Henrique VIII proibiu a circulação das Escrituras; conseqüentemente a destruição de Bíblias pelos católicos era tremenda. As perseguições continuaram e alguns reformadores ingleses fugiram para Genebra, onde publicaram uma Bíblia, conhecida como a Bíblia de Genebra. Esta foi traduzida diretamente do grego e hebraico, e foi à primeira Bíblia inteira a ser dividida em versos e em que foram omitidos os livros Apócrifos. A história da Bíblia em inglês é de grande importância e interesse; porém não nos devemos desviar do nosso propósito de tratar do livro dos Livros em português. Deixemo-nos, então, voltar para o assunto. Menciono essas traduções inglesas para mostrar que tinham influência na Europa também.



15. A VERSÃO DE ALMEIDA

Até o último quarto do século XVI não havia versão alguma completa e impressa das Escrituras em português. A zelosa rainha D. Leonor, mulher de D. João II, tentou vulgarizar as Escrituras. Ela mandou traduzir e imprimir, em 1495, a expensas suas, a Vida de Cristo, que foi originalmente escrita na língua latina pelo Dr. Ludolfo, de Saxônia, e que continha muitas citações da Bíblia. Dez anos depois ela mandou publicar na língua lusitana os Atos dos Apóstolos e as epistolas universais de Tiago, Pedro, João e Judas. Esta nobre senhora faleceu em 1525, e por uma reação do clero essas obras desapareceram das bibliotecas. Uma segunda edição da Vida de Cristo foi publicada em 1554; porém esta teve a mesma sorte. Nesta época, organizaram-se diversas companhias comerciais para o desenvolvimento das várias colônias dos paises europeus. Entre esta, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, que se organizou em 1602, cuja carta patente exigiu que cuidasse em plantar a igreja entre os povos e procurasse a sua conversão nas possessões tomadas aos portugueses nas Índias Orientais. Foi esta companhia que mais tarde patrocinou a revisão do Novo Testamento de João Ferreira de Almeida, em 1693. João Ferreira de Almeida nasceu em 1628 no local chamado Torre de Tavares, Portugal. Em 1642, encontrando-se na Indonésia, aceitou a fé da Igreja Reformada Holandesa pela profunda impressão que causou em seu espírito a leitura dum folheto espanhol. Desde o principio da sua conversão, mostrou a aptidão para o estudo eclesiástico. Ignoram-se as circunstâncias que o fizeram transportar-se á Batávia, onde se tornou muito ativo e zeloso no trabalho da evangelização, pregando nas línguas portuguesa, espanhola, francesa e holandesa. Durante a sua longa vida pastoral escreveu e publicou várias obras de caráter religioso, entre as quais sobressai a versão portuguesa da Bíblia. “Deixou completa a coleção de todos os livros do Novo Testamento, não logrando, porém, concluir tradução do Velho Testamento, que só chegou até o livro de Ezequiel, capitulo 48, versículo 21”. Ele foi casado, e teve uma filha e ainda um filho chamado Mateus. Faleceu em Batávia no segundo semestre do ano de 1691. Aos 16 anos Almeida iniciou sua obra de tradução do Novo Testamento, usando a versão italiana, francesa, espanhola e latina. Este trabalho perdeu-se. A tradução definitiva que foi publicada em 1681 foi feita diretamente do grego. Seguindo a versão holandesa como modelo, acrescentou os textos paralelos da Escritura na margem, e, no principio de cada capitulo, pôs o sumário ou os artigos de que nele tratava. Em 1681, começou a publicação da Bíblia de Almeida pelo Novo Testamento. A primeira edição foi feita em Amsterdã, por ordem da Companhia Holandesa das Índias Orientais, para circular entre as igrejas evangélicas portuguesas, que esta companhia estabelecera nas suas feitorias asiáticas. Eis o titulo: “Novo Testamento, isto é, todos os sacrossantos livros e escritos evangélicos e apostólicos do Novo Concerto de nosso fiel Senhor, Salvador e Redentor Jesus Cristo, agora traduzidos em português pelo Padre João Ferreira de Almeida, pregador do Santo Evangelho. Com todas as licenças necessárias. Em Amsterdã, pela viúva J.V. Somerem, ano de 1681”. No reverso do frontispício vem esta declaração: “Este Novo Testamento é impresso por mandado e ordem da ilustre Companhia da Índia Oriental das Unidas Províncias, e com o conhecimento da Reverenda Classe da cidade de Amsterdã, revisto pelos ministros pregadores do Santo Evangelho, Bartolomeu Heynen, Johannes de Vaught”. O trabalho tipográfico continha muitos erros e o próprio autor revoltou-se contra a incapacidade dos revisores. Esta edição sofreu uma revisão completa feita por Almeida e dois pastores holandeses, terminada em 1691. Dois anos depois do falecimento de Almeida, isto é, em 1693, esta edição veio a lume em Batávia ás expensas da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Eis aqui a cópia do seu titulo: “O Novo Testamento, isto é, todos os livros do Novo Concerto do nosso fiel Senhor e Redentor Jesus Cristo traduzido na língua portuguesa pelo reverendo Padre João Ferreira de Almeida, ministro pregador do Santo Evangelho nesta cidade de Batávia, em Java Maior. Em Batávia, por João de Vries, impressor da ilustre Companhia, e desta nobrecidade. Ano 1693”. No reverso do frontispício lê-se o seguinte: “Esta Segunda impressão do Novo Testamento, emendada, e, na margem, aumentada com os concordantes passos da Escritura Sagrada, á luz saiu por mandado e ordem do supremo governo da ilustre Companhia das Índias das Unidas Províncias na Índia Oriental e foi revista com aprovação da reverenda Consagração Eclesiástica da cidade de Batávia, pelos ministros pregadores do Santo Evangelho na igreja da mesma cidade, Theodorus Zas, Jacobus Opden Akker”. Estes revisores, sendo estrangeiros e incompetentes para rever a língua portuguesa, conseqüentemente fizeram consideráveis alterações, até mesmo desfigurando e corrompendo a beleza do original. O Saltério de Almeida foi publicado no livro da Oração Comum para uso das congregações da igreja Anglicana nas Índias Orientais, em 1695. Nesta época, o rei da Dinamarca, Frederico IV, interessou-se em desenvolver no Oriente o conhecimento das Escrituras Sagradas, e pelo seu patrocínio foi estabelecido o trabalho em Tranquebar, aonde foram muitos missionários célebres. Para este trabalho foi publicada, em Amsterdã, uma terceira edição do Novo Testamento de Almeida, ás expensas da Sociedade Propaganda do Conhecimento Cristão, em 1712. Os revisores são desconhecidos. Nesta edição desapareceram os sumários dos capítulos. Esta sociedade de Londres, reconhecendo a inconveniência e a despesa de fazer imprimir a Palavra de Deus na Europa para o uso da propaganda na Ásia, resolveu estabelecer uma oficina tipográfica em Tranquebar, encarregando-se os missionários dinamarqueses da direção da mesma. Deus estava, certamente, cuidando da impressão da Bíblia portuguesa, porque no transporte do material houve uma evidência da sua intervenção. “O material da tipografia foi embarcado em um navio da Companhia Holandesa, para ser transportado ao seu destino. A saída do Rio de Janeiro, onde arribara, foi este navio apressado pela esquadra francesa, que se apoderou de todo o carregamento, voltando o navio ao poder da companhia armadora a troco de avultado resgate. Por circunstâncias absolutamente inexplicáveis e que muitos têm por miraculosas, os volumes que continham o material tipográfico foram encontrados intactos no fundo do porão, e no mesmo navio continuaram a viagem para Tranquebar”. Com a chegada do material, alguns dos missionários se ocuparam na tradução da Bíblia e publicaram periodicamente diversas partes das Escrituras. Pela intervenção amigável de Theodoro Van Cloon, um oficial holandês em Batávia, receberam eles os originais (Gn. - Ez. 48:21) de Almeida em 1731. Quando o Sr. Cloon foi nomeado governador de Negapatão, interessou-se na obra da tradução pelos missionários dinamarqueses e prometeu mandar-lhes a versão de Almeida logo que chegasse á Batávia para ocupar o seu novo cargo, o que efetivamente fez no ano seguinte. Com os manuscritos, ele mandou a quantia de oitocentos escudos para ajudar nas despesas da impressão. Ao ouvir que existiam os manuscritos de Almeida, apressaram-se em traduzir os profetas menores para que pudessem publicar a Bíblia completa; porém, ao receber os originais, repararam que a revisão do mesmo seria muito demorada, razão porque publicaram os Profetas Menores só em 1732. Saiu esta obra em Tranquebar, com este titulo: “Os doze profetas menores, convém saber: Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, e Malaquias. Com toda diligência, traduzidos na língua portuguesa pelos padres missionários de Tranquebar, na oficina Real Missão de Dinamarca. Ano de 1732”. Foram publicados os demais livros do Velho Testamento na seguinte ordem: Os livros históricos - Josué a Ester - em 1738, revistos de acordo com o texto original pelos missionários holandeses de Tranquebar. Em 1740, saíram os Salmos, revistos e conferidos com os livros históricos de 1738. Quatro anos depois, foram publicados os livros dogmáticos – Jó a Cantares de Salomão. Em 1751, saíram os quatro profetas maiores – Isaias a Daniel. Os três primeiros, por Almeida, e o quarto, por Cristóvão Theodósio Walther. Simultaneamente, em Batávia estava sendo publicado o Velho Testamento, traduzido por Almeida, até o final de Ezequiel, e por Jacobus Opden Akker, que fez a tradução dos Profetas Menores. O primeiro tomo saiu do prelo em 1748 e o segundo em 1753. Assim a Bíblia em português estava completa. Estes dois volumes têm todas as páginas numeradas e, depois do título, vem uma folha, dizendo: “Esta primeira impressão do Velho Testamento sai á luz ás custas da ilustre companhia Holandesa da Índia Oriental, por mandando do Ilmo. sr. Gustavo Guilherme, Barão d’ Imhoff, Governador-Geral, e dos Nobilíssimos Srs. Conselheiros da Índia...”. Deste trabalho escreve o Dr. Teófilo Braga: “È esta tradução o maior e mais importante documento para se estudar o estado da língua portuguesa no século XVII: o Padre João Ferreira de Almeida, pregador do evangelho em Batávia, pela sua longa residência no estrangeiro, escapou incólume á retórica dos seis centistas; a sua origem popular e a sua comunicação com o povo levaram-no a empregar formas vulgares, que nenhum escritor culista do seu tempo ousaria escrever. Muitas vezes o esquecimento das palavras usuais portuguesas lava-o a recordar-se de temos equivalentes, e é esta uma das causas da riqueza do seu vocabulário. Além disto, a tradução completa da Bíblia presta-se a um severo estudo comparativo com as traduções do século XIV e com a tradução do Padre Figueiredo do século XVIII. É um magnífico monumento literário”.

Para o fim do século XVIII, e o principio do XIX, a coroa britânica incorporou Tranquebar aos seus domínios, e o idioma português foi gradualmente abandonado como a língua comercial, e conseqüentemente banido do uso das igrejas reformadas. Porém a divina providência estava preparando outro meio para a evangelização das terras do Velho Portugal e a conservação da Bíblia portuguesa. Portugal, até então mergulhado nas densas trevas da superstição romana, experimentou uma renascença. Isto veio por uma série de acontecimentos. Pela opressão política, umas pessoas refugiaram-se em Plymouth e em outras cidades da Inglaterra, o território nacional foi ocupado por tropas inglesas e o exército lusitano organização segundo o gênio disciplinador inglês, as relações comerciais e políticas foram estreitadas com a Grã-Bretanha, e propagou-se rapidamente por todo o reino o sentimento de tolerância religiosa. Isso, com as facilidades de comunicação com as ilhas e colônias portuguesas induziu a sociedade Bíblica Britânica a publicar uma edição do Novo Testamento em português da versão de João Ferreira de Almeida em 1809. Desde então esta sociedade tem publicado muitas edições, e, sob a mão de Deus, tem sido usada maravilhosamente para a disseminação da Bíblia em português. Em 1819 a Bíblia completa de João Ferreira de Almeida foi publicada em um só volume pela primeira vez, com este titulo: “A Bíblia Sagrada, contendo o Novo e o Velho Testamento, traduzida em português pelo padre João Ferreira de Almeida, ministro pregador do Santo Evangelho em Batávia Londres, na oficina de R. e A. Taylor, 1819 - 8 gr. de IV- 884 pp., a que se segue, com rosto e numeração o Novo Testamento, contendo IV- 279 páginas.” Desde essa data tem sofrido várias revisões. A primeira, em 1840, foi chamada de Revista e Emendada. Em 1847 foi novamente revisada, e chamada de Revista e Reformada. A revisão de 1875 foi chamada de Revista e Correcta. Depois, sofreu a correção de vários “erros óbvios” e algumas modificações ortográficas e recebeu o nome de Revista e Corrigida, que é essencialmente a Bíblia de uso popular ainda. Esta última revisão data de 1898. A Bíblia por João Ferreira de Almeida que atualmente temos, não é realmente dele, por causa das diversas correções e versões por que tem passado; entretanto, o texto original era dele e as modificações foram feitas devido ás exigências da língua, e á luz dos textos originais, e, sendo o primeiro a dar ao protestantismo português as sagradas letras, é digno de ser reconhecido como o autor da Bíblia que tem o seu nome.



16. A FORMAÇÃO DO CÂNON

16.1. Uma Definição Provisória

Parece que o tema nos impõe, pelo menos inicialmente, um tratamento manualesco sobre o mesmo. O termo cânon descende do grego kanon, cana, que nada mais era que uma vara de medir. Pelo fato de servir como medida padrão, ao longo do tempo, por metáfora, veio a significar uma regra. Assim, um cânon cronológico diz respeito a uma medida padrão de tempo; um cânon de pesos e medidas, aqueles padrões aceitos mundialmente e que são exemplos para todas as medidas e pesos; cânon literário fala acerca das obras de um autor, para diferenciar de supostas obras e autores que escreveram reivindicando serem deles, e assim por diante. O cânon das Escrituras diz respeito àquela coleção de livros que os cristãos aceitam, usam e aos quais atribuem autoridade inigualável a quaisquer outros livros ou obras. São os livros que a igreja recebeu e, por conseguinte, acredita procederem de Deus, resultando, daí, sua utilidade intrínseca. Quando tratamos do cânon, já deixamos implícito o ato da aceitação de uns livros e a rejeição de outros. Mas podemos tratar o cânon como algo anterior a essa aceitação. Isso quer dizer que outros livros existiram sendo conhecidos ou não e que até receberam, em algum tempo e local, o status de canônicos. O cânon aponta, primeiramente, para o próprio ato da influência divina sobre o mesmo. Vejamos o tratamento que Young (1964, p.37) dá ao tema: “Caso um livro tenha sido inspirado por Deus, é canônico, quer seja aceito ou não pelos homens como tal. É Deus, e não o homem quem determina se um livro pertence ao cânon sagrado. Por conseguinte, caso certo escrito tenha efetivamente sido o produto da inspiração divina, tal escrito pertence ao cânon desde o momento de sua composição... Portanto, observa-se que a palavra” cânon “significa muito mais que meramente uma lista de livros”. Para Young, pois, o cânon não reside propriamente no trabalho humano e na aceitação dos livros. É, antes de tudo, uma obra divina. O cânon, nesse caso, é divino. Poderia haver, nesses casos, obras que foram divinamente inspiradas e que, por algum motivo não fazem parte da coleção que recebemos. Ainda mais, os livros que foram aceitos e recebidos por nós, só chegaram ao status de canônicos dada à influência de Deus na vida dos homens que pesquisaram e catalogaram esses livros. A visão sobrenatural do cânon que tem Young diz que se o homem fosse capaz de determinar, por algum processo, o que era ou não canônico, ele precisaria ter uma inteligência no mesmo nível de Deus, sabedor das coisas como Deus sabe. A idéia de Young é praticamente unânime entre os estudiosos. Todos estão convictos de que a canonização é o ato de reconhecimento da importância de uma obra, e não da imposição de uma certa canonicidade de um livro. Um livro primeiramente se mostrou útil, inspirado e por isso foi reconhecido como canônico. Com efeito, a canonização deve ser reputada como uma obra divina. A Bíblia foi escrita num espaço temporal de cerca de quinze séculos de Moisés a João; tem participação de aproximadamente quarenta escritores, usando três línguas diferentes hebraico, aramaico e grego; estando seus escritores em três continentes: África, Ásia (oriente médio) e Europa.


6.2. Termos Subjacentes Ao Cânon

Ao falarmos de cânon, é impossível não nomear palavras como revelação, inspiração e autoridade. Elas aparecem com tanta naturalidade que nem prestamos atenção ao seu uso e, por vezes, os tratamos como se soubéssemos o que querem dizer. A revelação diz respeito diretamente ao ato de Deus se comunicar com os homens; a inspiração diz respeito á Escritura e aos escritores, ao passo que a autoridade diz respeito aos leitores. A palavra revelação é fundamental. “Deriva de um nome latino que significa ‘desvelar’, indica que Deus tem tomado a iniciativa para dar-se a conhecer... seja Deus quem for, está totalmente além de nosso alcance. Sua infinita grandeza está velada a nossos olhos. Não podemos descobri-lo por nós mesmos. Se tivermos de chegar a conhecê-lo, ele deve dar-se-nos a conhecer”. A Bíblia é o meio de revelação, pois através dela Deus se comunica. É também a fonte de revelação, pois nela Deus é comunicado, por ela conhecemos as coisas espirituais, os atos e vontade de Deus para a vida do homem. A Bíblia também revela quem nós somos. Mesmo que a psicologia tenha avançado grandemente nos últimos anos e possa fazer afirmações verdadeiras sobre o homem, a Bíblia ainda continua sem igual no ato de nos informar quem somos, e o que precisamos fazer. Além disso, ao ler as páginas da Bíblia ficamos impressionados como somos informados acerca de nós mesmos e a única conclusão que podemos tirar é que seu autor é verdadeiramente aquele que nos criou. Deus se comunica na Bíblia falando a nós e ao mesmo tempo se mostrando, dando-se a conhecer. Por outro lado, ela nos informa o que somos e como somos. Quanto ao termo inspiração, assim fala Stott: “Indica a forma principal que Deus tem escolhido para revelar-se. Tem se revelado em parte na natureza e sobremaneira através de Cristo, porém, também ‘falando’ a determinadas pessoas. E este processo de comunicação verbal é o que se chama” inspiração “. Não empregamos a palavra no sentido em que falamos de um poeta ou músico que está ‘inspirado’. Pelo contrário, tem uma conotação precisa e especial. Porque quando Paulo escreve que ‘toda Escritura é inspirada por Deus’, as três últimas palavras constituem uma só expressão grega que poderia traduzir-se literalmente ‘respirada por Deus’. O significado, pois, não é que Deus respirou nos escritores para dar-lhes seu caráter especial, senão que o que os homens escreveram foi respirado por Deus”. Não devemos pensar que a inspiração foi apenas um ato mecânico, que os escritores tiveram algum tipo de psicografismo espiritual, nem que foram máquinas de escrever a serviço de Deus. A inspiração, claro, inclui elementos verbais: “Disse o Senhor a Moisés..., Jeremias..., Ezequiel..., João” e assim por diante. Por outro lado, o Espírito comunicou ensinamentos aos escritores: “Foram-nos revelados pelo Espírito, conferindo coisas espirituais” (1Co. 2) Outras vezes, os escritores narraram aquilo que viram e ouviram: “O que temos visto..., ouvido..., contemplado..., apalpado..., isso escrevemos” (1Jo. 1). Parte daquilo que foi escrito envolveu um trabalho de pesquisa dos escritores: Os demais atos do rei...Eis que estão escritos nas “crônicas dos reis de Judá”, “nas crônicas dos reis de Israel”, “no livro das guerras do Senhor”, “no livro do cronista”, “nas atas do rei”. Os escritores do Novo Testamento, especialmente Lucas, Paulo e Judas dão a pista do caminho que percorreram ao escrever alguns dos seus textos. Vejamos Lucas: “Visto que muitos empreenderam uma narração... a mim, no entanto, escrevi as coisas de forma coordenada...”. Agora, Paulo: “Neste assunto manda o Senhor: que...”, “aqui, não tenho mandamento do Senhor, mas dou minha opinião...” (1Co. 7). Finalmente, Judas: “Amados, quando usava de toda a diligência para vos escrever acerca da nossa fé comum...” (Jd. 3). A Bíblia é a eterna palavra de Deus, sobre Deus, com palavras humanas, sobre os homens; palavras dos homens acerca de Deus; palavras de Deus acerca dos homens; palavras dos homens aos homens; contém palavras verdadeiras de Satanás com intuitos mentirosos e palavras mentirosas de Satanás. O que faz a Bíblia ser palavra de Deus não é cada virgula que ela contém, mas o seu conjunto, a sua mensagem que o Espírito concedeu que os homens registrassem para o nosso ensino. Ai reside a sua inspiração. A inspiração das Escrituras pode ser provada pelo efeito que ela produz na vida do crente. Em primeiro lugar, a inspiração pode ser provada pela atualização da palavra. Ela não muda, é sempre atual. O que foi escrito há muito tempo continua sendo verdade, tanto quando fala da natureza, quanto das coisas ou do homem. A veracidade daquilo que a Bíblia fala é outra prova da sua inspiração. As questões históricas e arqueológicas dos povos bíblicos, tão debatidas em tempos passados, têm sido comprovadas a cada dia com as descobertas arqueológicas. Além disso, acresce-se o fato de haver, na Bíblia, o fenômeno das profecias e milagres. Estudando-se as datas em que as profecias bíblicas foram dadas, comprova-se que o seu vaticínio nunca foi concomitante ou a posteriore ao acontecido. É verdadeira, portanto. A mudança que a Bíblia produz no leitor é a mais subjetiva de todas, mas a que pode falar mais alto. A Bíblia tem um grande poder de modificar a vida da pessoa que a lê e leva seus ensinos a sério. Esse poder transformador é o próprio poder do Espírito que se manifesta através das palavras da Bíblia para influenciar a vida do crente. A Bíblia nos aproxima sempre mais de Deus; ninguém que se desvie por outros caminhos, deixando ao Senhor, pode afirmar que o fez por causa das sucessivas leituras da Bíblia. Porém, o abandono da sua leitura é também o passaporte para o abandono da fé. Quanto á autoridade das Escrituras, “é o poder, o peso inerente na Escritura por ser o que é, a saber, uma revelação divina dada por inspiração divina. Se for palavra de Deus, tem autoridade sobre os homens. Porque detrás de cada palavra que qualquer um pronuncie, está à pessoa que a pronuncia. É o que fala (seu caráter, conhecimento e posição) o que determina como os demais têm de considerar suas palavras. Assim, pois, a palavra de Deus tem autoridade. Por ser ele quem é, cremos no que tem dito... Sustentamos, pois, que Deus se tem revelado mediante a palavra; que essa palavra divina (ou’respirada’ por Deus) foi escrita e preservada nas Escrituras e que as Escrituras são, de fato, a palavra escrita de Deus que, portanto, é verdadeira e digna de fé e tem autoridade divina sobre os homens”. A autoridade fala do poder que Deus tem de nos mandar fazer ou deixar de fazer algo. Ele é Senhor, criador e redentor. Somos dele por criação, redenção e habitação. Ele nos criou, salvou e habita em nós pelo Espírito, portanto, tem autoridade para dizer o que deve ser feito. A autoridade bíblica está ligada á sua inerrância. Isso quer dizer que tudo o que a Bíblia diz, diz sem errar. A inerrância é a confirmação também da própria inspiração bíblica. Deus não mentiu nem se enganou acerca das informações que estão contidas na Bíblia. Portanto, nos autógrafos-documentos originais que saíram em primeira mão dos escritores bíblicos não há nenhum tipo de erro. O que temos hoje como nossa Bíblia é cópia, de cópia, de cópia. Pode ter havido, em algum tempo, voluntária ou involuntariamente, erros, nas transcrições, audições, cópias, erros de julgamento, geográficos ou de pessoas. Ainda assim, porém, o que temos hoje é um documento confiável. Além dos termos tratados anteriormente, devemos acrescentar aqui o conceito de canonicidade. A canonicidade diz respeito aos critérios objetivos que uma determinada comunidade, e por extensão, todos os eruditos que trataram da coletânea de livros bíblicos, usou para determinar o modo de aceitação ou rejeição de um ou mais livros. Em outras palavras, a canonicidade fala daquelas razões dadas para a aceitação ou rejeição de um livro. Alguns desses critérios são:


- Deve ter sido escrito entre Moisés e Esdras;
- Deve levar o nome de um grande profeta, sacerdote ou discípulo do mesmo;
- Deve ter sido escrito em hebraico;
- Deve ter aceitação geral;
- Deve ser doutrinariamente fiel;
- Não deve ser exagerado nos fenômenos metafísicos;
- Deve falar de Jesus e apontar para ele;
- Deve ter sido escrito por um apóstolo ou por um de seus discípulos;
- O espírito do leitor deve atestar a inspiração interna do livro.


16.3. Motivos Do Surgimento Do Cânon

Só podemos falar de motivos prováveis e também múltiplos do surgimento do cânon. Tanto para os escritos do Antigo como do Novo Testamento houve uma infinidade de livros que reivindicaram falar em nome de Deus para o seu povo. Na verdade, quando os escritores escreveram seus livros não pensavam, originalmente, que eles fariam parte do cânon. Dada esta variedade de livros e a localização das diversas sociedades leitoras, uns livros eram conhecidos em uma determinada região enquanto que outro tanto não era conhecido. Isso levou determinadas comunidades a receberem um determinado número de livros e atribuir-lhes autoridade e outras comunidades usarem e atribuírem autoridade a outras coleções. Antes de Jesus e depois dele, não havia uma preocupação com uma coleção fechada de livros. As comunidades judias em Alexandria e em outras áreas da dispersão usavam certos livros que os judeus da Palestina não conheciam ou rejeitavam. No Novo Testamento lemos acerca de epístolas que Paulo escrevera aos coríntios que não conhecemos. Além disso, ele escreveu uma carta aos laodicenses que não sabemos qual foi. Tudo isso corrobora a idéia, como já disse, de que há escritos, mesmo inspirados por Deus, que não fazem parte da coleção que temos recebido. Visto que os livros foram, originalmente, escritos para uma determinada comunidade sem que o seu autor pensasse em uma coleção autorizada, junto com outros livros, muitos outros livros foram escritos e que nós não conhecemos. Além disso, dada à particularidade daquela comunidade e dos assuntos que foram tratados nesses livros, por certo algum assunto não interessou muito aqueles que trabalharam na catalogação autorizada desses referidos livros. Os judeus liam seus livros sem se preocuparem se eram ou não canônicos. Isto é, liam-nos independentemente de fazerem ou não parte de uma coleção autorizada. De certa forma, foram os cristãos que forçaram os judeus a terem sua coleção fechada. Logo no inicio os judeus perceberam que os cristãos estavam usando seus escritos para comprovarem a natureza e ministério de Jesus. Isso os levou a definir a sua coleção de livros autorizados. Da mesma forma, quando começaram a surgir heresias no seio da igreja, quando os cristãos viram que essas heresias eram ensinadas de púlpito e transcritas em livros, os ortodoxos começaram a se preocupar em determinar que livros eram próprios para a leitura e quais eram impróprios. É claro que não apenas os hereges os cristãos eram hereges para os judeus e havia hereges no meio dos cristãos foram os propulsores para a formação de uma coleção autorizada de livros. Mesmo que seja certo, como já disse anteriormente, que havia uma coleção muito grande de livros lidos por judeus e cristãos; e que uma comunidade conhecia e lia livros que outra comunidade não conhecia, havia também livros que não gozavam de aceitação por essas comunidades. Há livros que, de chofre, eram rejeitados por judeus e cristãos. Esses livros tinham sua leitura proibida em público sinagoga ou igreja-e na privacidade. Existiam livros que deveriam ser lidos apenas na privacidade devocional das pessoas (e só por algumas pessoas), mas não podiam ser lidos em público. Esses são os livros que gozavam de uma aceitação mais local. Existiam livros, no entanto, que eram por todos aceitos e lidos, independentemente da comunidade. Era recomendada a leitura desses livros, tanto a individual como a coletiva. Esses últimos livros foram os primeiros a serem aceitos na coleção canônica dos judeus e dos cristãos. Para a coleção do Antigo Testamento, os livros da lei nunca encontraram dificuldade para serem aceitos. Os profetas também não tiveram tantos problemas para a aceitação. Alguns dos chamados livros poéticos tiveram problemas para serem aceitos pelos judeus. Para os cristãos, a lei, os profetas, os salmos e os evangelhos não tiveram problemas para serem aceitos nas coleções autorizadas. Para os cristãos, algumas epístolas encontraram resistências para serem aceitas. Os judeus e cristãos não classificavam seus livros em canônicos e apócroficos. Esta é uma definição bem posterior. Para os livros sobre os quais não residia nenhum problema de aceitação, os judeus aplicavam a designação de livros que contaminam as mãos, isto é, eles eram tão santos que “contaminavam” as mãos de quem os lia. Os cristãos classificavam seus livros em homologoumena, aqueles que tinham aceitação geral, sobre os quais ninguém falava contra, e os antile-goumena, livros acerca dos quais existiam controvérsias; eram aceitos por uns e não aceitos por outros.


16.4. Os Cânones

Do que já falei sobre a diversidade de comunidades, além da divisão de judeus e cristãos, podemos falar de cânones diferentes. Tratemos, inicialmente, da divisão do cânon. Os livros do cânon não estão dispostos por sua ordem cronológica, alguns seguem a outros cronologicamente conforme os temos hoje, mas não todos, mas segundo os temas literários. Tratando-se da literatura do Antigo Testamento, temos apenas três tipos: a profecia, a história e a poesia. Assim, os judeus da Palestina têm uma divisão diferente do cânon recebido pelos judeus da Dispersão. Os judeus palestinos adotam uma divisão tripla do seu cânon: os livros da Lei de Moisés; os livros proféticos (incluem: os livros históricos como Josué, Juizes... esses são os chamados profetas anteriores, e os profetas posteriores, Isaias, Jeremias...); e os escritos (os escritos incluem os poéticos: Jó, Salmos... e os rolos: Ester, Crônicas...). Os judeus dispersos (alexandrinos, daí o nome: cânon alexandrino) adotam uma divisão quádrupla: A lei, históricos, poéticos e proféticos (sendo os profetas chamados de maiores: Isaías, Jeremias e os profetas chamados menores: Oséias, Amós e Obadias...). Os cristãos (católicos e protestantes) adotam a divisão quádrupla dos judeus da dispersão. O cânon alexandrino, no entanto, adota outros livros que os judeus da Palestina não aceitam. São os chamados apócrifos / deuterocanônicos. Os protestantes adotam apenas a divisão do cânon alexandrino, ao passo que usam os mesmos livros do cânon palestinense. Os católicos ousam a divisão e número do cânon alexandrino. A literatura do Novo Testamento compreende a história (Evangelhos e Atos), a epistola e a profecia (Apocalipse). Em termos gerais, considerando-se apenas o conteúdo da literatura bíblica, temos dois cânones: O Antigo e o Novo Testamento. O cânon hebreu é o cânon do Antigo Testamento. O cânon dos cristãos inclui o Antigo e o Novo Testamento. A diferença que existe diz respeito apenas ás divisões e número de livros que o Antigo Testamento contém. Não há divergência em se tratando de católicos e protestantes, quanto ao conteúdo e número de livros do Novo Testamento. O cânon alexandrino é composto, além dos livros que normalmente já temos no cânon protestante, dos seguintes livros: I e II dos Macabeus, Judite, Baruque, Eclesiástico, Tobias, Sabedoria de Salomão e Epistola de Jeremias. Além destes há os acréscimos a Ester e a Daniel e os sacerdotes de (Susana, Daniel e os sacerdotes de Bel e Daniel e o Dragão).


16.5. Os Concílios E O Cânon

Os concílios foram as grandes reuniões que os teólogos e sábios do passado fizeram para decidir que livros a comunidade do povo de Deus, como um todo, deveria receber como autorizados. Já anteriormente falei que algumas comunidades, devido ás distâncias entre elas, e devido ás suas necessidades, usavam livros diferentes. É grande o número de livros do Antigo e Novo Testamento que já receberam o status de canônicos. Por causa disso, alguns chegaram a nominar os livros em “livros inspirados em geral”, quando se referia a um livro que foi usado como canônico por uma ou mais comunidade. Por outro lado, os livros “inspirados especiais” são livros que foram aceitos por todos e em todo lugar. O primeiro concílio de que se tem noticia é o concilio dos judeus, no final do primeiro século da era cristã, na cidade de Jâmnia, entre 90 -115 d.C. Esse foi o concilio que determinou o cânon do Antigo Testamento conforme os cristãos protestantes usam hoje, em distinção ao cânon grego-alexandrino, mais extenso, que os católicos usam. Os cristãos também fizeram os seus concílios. Entre os mais famosos e que trataram sobre a Bíblia, estão os de Laodicéia, 363; de Cartago, 397; de Hipona, 419; e de Trento, 1545. Os primeiros concílios serviram para determinar e ratificar os livros do Novo Testamento que deveriam ser lidos e usados pelos cristãos de todo o mundo conhecido. Quanto ao uso do cânon mais curto ou mais longo com apócrifos ou não, a igreja mantinha uma certa flexibilidade. Deixava que os próprios cristãos decidissem se usariam ou não. Até em data recente, ainda no século passado, as sociedades bíblicas publicavam Bíblias com ou sem apócrifos. Um exemplo é a sociedade Bíblica Alemã, que chegou a publicar várias edições da Bíblia luterana com os apócrifos e sem eles. Não se pode falar em “os católicos” como se existisse um outro tipo de cristianismo com exceção dos ortodoxos de várias linhas até o século dezesseis. Logo, a igreja era tendente a usar os apócrifos uma hora e não usar em outras. Depois da reforma, os “protestantes” reformadores, Lutero, Calvino e Zwinglio suscitaram a discussão acerca de alguns livros da Bíblia. Optaram por não usá-los. Em reação a isso, a igreja católica romana optou por usá-los. Essa opção é tanto uma continuidade histórica quanto uma reação antiprotestante. Não podemos enveredar, outrossim, por uma argumentação de que não se usa os apócrifos em virtude de os reformadores não terem aceitado o seu uso. Até mesmo em relação ao Novo Testamento houve discussão dos reformadores. Por exemplo, para Lutero, Ester e Tiago não deveriam estar fazendo parte do cânon. Ele mesmo sugeriu que se tirasse esses dois livros da lista dos autorizados.


17. NOSSA DISPOSIÇÃO

Do que recentemente foi colocado, acredito que o mais importante de tudo é que os cristãos tornem a afirmar o conceito da Bíblia como regra de fé e prática. A partir do século dezesseis, Jean Astruc iniciou, aparentemente sem querer, um movimento que culminou na descrença total da Bíblia como literatura humana e divina. É estranho hoje que as casas de espetáculos encham-se para ouvir obras de Shakespeare ou outros autores; que livros de autores desconhecidos sejam vendidos aos milhares, ainda mais, comentários. E comentários são vendidos acerca de Platão, Tales, Heráclito, Aristóteles, JJ.Benitez... È charmoso estar lendo um texto sobre religião oriental, ao passo que parece ultrapassado e vergonhoso empunhar a Bíblia ou um comentário bíblico. Parece igualmente estranho que livros estejam aparecendo nesses últimos dias sobre assuntos que parecem bíblicos, como por exemplo: vida de Jesus na Índia, Tibet, China, Jesus como discípulo de monges tibetanos, a comunidade Essênia de Cumrã, os escritos do Mar Morto e coisas do gênero. Esses livros vendem aos borbotões, neles as pessoas acreditam e discutem os assuntos bíblicos baseados neles, e, no entanto, não estão lendo a Bíblia. Os livros apócrifos e pseudepígrafos também são moda em nossos dias. As pessoas estão comprando e lendo esses livros e crendo neles como se fossem canônicos. A partir deles é que tiram a sua fé, melhor, descrêem da fé e discutem com aqueles que estão lendo a Bíblia. Não nos parece estranho tudo isso!? Tudo isso começou no século dezesseis. A conseqüência de tudo está ai diante de nós. Se toda questão residisse ai, não seria tão grave. Acontece, porém, que os próprios cristãos, que já afirmaram que a Bíblia era única regra de fé e prática, enveredaram mais do que nunca em um tipo de tradicionalismo histórico e parcialidade bíblica. Se fizermos uma pesquisa a nível profundo e sério, veremos que, mesmo que as publicadoras de Bíblias estejam mostrando milhões de Bíblias vendidas a cada ano no Brasil, o número de pessoas que está lendo efetivamente a Bíblia toda é mínimo, ínfimo. Bíblia, para algumas pessoas, resume-se em uns poucos livros: Salmos e Provérbios, no Antigo Testamento, ás vezes Gênesis e Isaias. Estes dois últimos sofrem com a questão da “mitologia” bíblica, no primeiro caso e com a diversidade de autores, no segundo. No Novo Testamento, lê-se Mateus, João e 1 Coríntios 13. É claro que estou dando um tratamento reducionista á questão. A ênfase no momento quer dar idéia que, dos 66 livros do cânon protestante, cerca de 10% estão sendo lidos. Quanto mais aqueles que adotam a um cânon mais longo. Estão brigando por causa de livros que nunca leram! Chegamos há um tempo em que os cristãos são guiados por uma subjetividade na vida prática. Se o coração não condena, tudo é possível. Não é a palavra, quem orienta o crente, mas suas visões, profecias e outras coisas que ele recebe. Se os descrentes estão lendo os livros apócrifos, os cristãos estão fazendo uma leitura selecionada e particularizada dos livros bíblicos. Nossa questão principal não reside em quem tem mais ou menos livros, mas na disposição para a obediência. E temos sempre os nossos jeitinhos, nossas interpretações para escaparmos de praticar a Bíblia no dia-a-dia. Temos sempre uma bíblia a nosso favor. Quem quer beber álcool, por exemplo, esquecerá tantas recomendações contra o uso do mesmo e trará a recomendação de Paulo a Timóteo “toma um pouco de vinho”, e o exemplo de Noé e Jesus, que, não apenas tomou, mas transformou água em vinho. Por outro lado, se alguém quer negar o uso da entrega do dizimo, dirá que é uma prática do Antigo Testamento que nunca foi confirmada no Novo. Quem quer casar com o descrente, acreditará que seu casamento será o único onde seu cônjuge será “santificado pelo outro”. Ter uma bíblia a nosso favor é achar sempre versículos que apóiem os nossos proceder, seja por meio de citação de outros textos ou por meio de uma nova interpretação que damos ao texto. Assim, nunca estaremos obrigados a fazer o que realmente a Bíblia manda. O problema que os reformadores enfrentaram foi teológico. O nosso problema atual é bíblico. É preciso uma nova reforma.



BIBLIOGRAFIA

Livros

A Bíblia de Jerusalém; Direção editorial: Tiago Giraudo. São Paulo: Editora Paulus, 1973.
HALLEY, Henry H. Manual Bíblico. São Paulo: Editora Vida Nova, 1983.
BOYER, O.S. Pequena Enciclopédia Bíblica. São Paulo: Editora Vida, 1993.
Enciclopédia Ilustrada Da Bíblia; Direção da obra: Pat Alexandre. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.
DAVIS, John D. Dicionário Da Bíblia. Rio de janeiro: Editora Juerp, 1985.
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JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: Editora CPAD, 1990.
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Sites

http://www.ccerqueira.hpg.ig.com.br/Arqueologia_Biblia.htm
http://http://www.sbb.org.br/
http://www.buscacrista.com.br/biblia/00Biblia.htm
http://www.arras.com.br/pages/luciana/historia/diadabiblia.htm


Cds

Bíblia Sagrada – Tradução Feita a Partir de Textos Originais – Editora Vozes.
Novo Testamento – Guia Completo Para Leitura e Estudo – Editora Vale livros.

                         


                                                

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